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domingo, 21 de abril de 2024

Casa velha

 

Este escriba é uma pessoa de grande presença nos espaços que frequenta. Na tentativa de atrair menos olhares, vem frequentando academia e fazendo exercícios diariamente. Confesso, exercitar-me não é a minha atividade predileta, porém, tal como enunciado há quase dois mil anos na célebre frase: "mens sana in corpore sano" do poeta romano Décimo Junio Juvenal, o intelecto não sobrevive sem a saúde do corpo e vice-versa.

            Além da musculação, tenho dedicado-me nos exercícios aeróbicos, e, exercitar-me na esteira (sem sair do lugar) é muito entediante, inicialmente ouvia músicas, até que tive a ideia de ouvir podcast. Encontrei um podcast da booktuber Isabella Lubrano no Spotify com o título "Casa velha", um romance perdido de Machado de Assis (1839-1908). Aqui não apresentarei Machado, pois isso seria algo desnecessário em se tratando do maior escritor brasileiro.

            A pesquisadora Lucia Miguel Pereira (1901-1959) foi uma biógrafa de Machado de Assis que, ao encontrar alguns exemplares de uma revista feminina que continha trechos de Casa velha, não mediu esforços e, obstinadamente reuniu todos os exemplares para ter acesso à novela completa e publicou-a na íntegra. Ninguém sabe dizer por que Machado não publicou a obra no formato de livro. Naquela época, era comum publicar na forma de folhetins, vários escritores faziam isso enquanto continuavam a escrever a trama, inclusive testando a popularidade e podendo mudar os rumos das personagens para capturar a atenção dos leitores. Talvez não tivesse gostado de sua produção ou, estaria guardando-a para publicar em outro momento, caso tivesse necessidade financeira. Como Machado, não está entre nós, nunca saberemos, podemos (como de praxe) apenas supor. Supor se Capitu traiu Bentinho ou não, etc.

            Voltando à esteira, digo, voltando a experiência do podcast para ouvir literatura, senti-me, tal como no início do século XX, não, não sou tão velho, falo das rádionovelas que tanto sucesso fizeram no passado, quando as donas de casa ouviam a novela por meio do rádio, enquanto realizavam as atividades domésticas, eu, por meu turno, concentrava-me em ouvir a narração e não pensar no sofrimento causado pela atividade aeróbica.

            O nome do narrador, não saberemos, nunca, Machado não disse na obra (bem machadiano), sabemos apenas que ele era um padre, não muito apegado aos afazeres religiosos, pois, sempre que possível deixava-os ao encargos de seus colegas sacerdotes. O padre, tinha uma quedinha por política, mas, jamais ingressou nessa seara. Tendo lido um livro de um escritor de nome Luiz Gonçalves Santos considerou-o ridículo e, que ele poderia escrever muito melhor. Decidiu que iria escrever um livro sobre a história do Primeiro Reinado do Brasil.

            O padre tomou conhecimento por meio do reverendo Mascarenhas, que na residência de D.Antônia, viúva de um ex-Ministro do Império, havia uma grande biblioteca que tinha muito material deixado pelo falecido que poderiam reportar a esse período da história nacional. O padre solicita que o reverendo Mascarenhas interceda junto à viúva em seu favor com vistas a fazer pesquisa na biblioteca do casarão conhecido popularmente como Casa Velha.

            Tendo sido aceita sua solicitação, o padre passa a frequentar assiduamente a biblioteca, conhece os familiares de D.Antonia, agregados e escravos. Com ouvidos atentos e mente afiada, passa a descobrir segredos de seus integrantes. Faz-se amigos de todos e de todos tem  a admiração, afinal, um homem de batina não precisa se esforçar muito para ser estimado.

            Conhece Félix, o filho de D. Antônia, que não sabe o que fazer da vida, ora pensa em ser deputado, ora pensa que é melhor se manter perto da mãe, a qual estima muito, para melhor cuidar dela. Há também Lalau (Cláudia), órfã de mãe e que foi criada por D. Antônia, recebendo uma educação acima do que sua classe social lhe reservaria.

            Não demorou para que o padre, que se encantou pela jovem Lalau, percebesse que também Félix era por ela apaixonado. Conversando com os jovens e observando-os, descobriu que Félix era correspondido. Como D. Antônia insistia que o padre viajasse com Félix para a Europa e, por lá ficasse algum tempo. Soube também que D. Antônia estava preocupada em arranjar um casamento para Lalau, propondo que fosse com um jovem livre, porém, pobre.

            O padre, encorajou-se e disse que a moça merecia alguém com maior refinamento, pois era muito educada e bela. Disse ainda que Félix e Lalau se amavam e que ela deveria considerar o casamento de ambos. D. Antônia não concordou, disse que teria constrangimento em anunciar o casamento de seu filho com alguém de uma classe social inferior, mesmo que Lalau fosse bela e muito educada. Casamento, disse ela, é a união de famílias e propriedades.

            O narrador não se deu por vencido e retornou à conversa em outras oportunidades. Dona Antônia, olhando para o retrato do falecido marido, disse que se o padre soubesse o que ela sabe, lhe daria razão e a apoiaria quanto à necessidade de afastar os jovens.

            O padre, então, chegou á conclusão que Lalau era fruto de uma relação extraconjugal do ex-Ministro. E disse o que D. Antônia apenas dera a entender. Isso inclusive explicava um bilhete suspeito que o padre havia encontrado no meio de um livro e não havia revelado a ninguém. Disse que tinham mesmo que afastá-los, não havia outra coisa a se fazer. D. Antônia pede que o Padre convença ambos da impossibilidade de se casarem. Félix aceita o afastamento, não havia outra forma. Passa até mesmo a gostar da ideia de ter uma irmã. Lalau resolve ir embora da casa velha e passa a morar na casa de uma tia pobre onde passa a ajudá-la a fazer trabalhos de costura em busca da sobrevivência. Lalau prefere ter uma vida condizente com a sua classe social.

            Enquanto, Lalau tem a possibilidade de se casar com Vitorino, D. Antônia acena com a possibilidade da união entre Félix e a bela Sinhazinha, filha do Coronel Raimundo e neta da baronesa. O padre vai ter com D. Mafalda, a tia de Lalau e ouve desta que Lalau era uma criança quando sua irmã conheceu o ex-Ministro, portanto, não era filha deste, sendo que a criança que era fruto do relacionamento extra-conjugal do casal havia morrido com poucos meses de vida. Ao contar o fato à D. Antônia, esta estupefata, olha para o retrato do marido e descobre que foi traída, afinal, a vida toda considerou ele um marido leal. Havia enganado o padre, para ter dele o apoio na separação dos jovens. Atirou no que viu, acertou no que não viu.

            Não sou Machado de Assis, mas não vou contar o resto da história, mas, deixo uma dica, Machado sempre desafiou as obviedades.Fica a sugestão de leitura.     

Sugestão de boa leitura:

Título: Casa Velha.

Autor: Machado de Assis.

Editora: Garnier, 1999, 183 p.    

 


domingo, 14 de abril de 2024

O avesso da pele

 

Jeferson Tenório (1977) é um escritor, professor e pesquisador brasileiro, radicado em Porto Alegre. Em 2021, recebeu o prêmio Jabuti referente à obra aqui resenhada e publicada no ano anterior. Trata-se da maior honraria a uma publicação literária nacional. O autor, então ganhou notoriedade e passou a ser chamado para entrevistas, no entanto, tornou-se alvo de haters, sendo inclusive ameaçado de morte. Em 2022 (último ano do governo Bolsonaro), seu livro passou pela seleção do PNLD - Programa Nacional do Livro Didático, escolhido que foi por uma equipe de analistas professores a serviço do Ministério da Educação e da Cultura (MEC), para fazer parte do acervo das bibliotecas de escolas públicas.

            Recentemente, algumas vozes (conservadoras) se levantaram e acusaram a obra de possuir vocabulário de baixo nível e de incitar à promiscuidade. Não demorou e os governos de Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná, de lideranças igualmente conservadoras, retiraram tal livro das bibliotecas. Este escriba, apenas sabia que o referido livro denunciava o racismo estrutural de nosso país, mas, diante da polêmica, resolveu adquiri-lo, para ler na íntegra e não ser mais um a julgar sem verdadeiramente conhecer a obra. Após a censura por parte do trio governamental, a venda do livro aumentou em 1400%. No entanto, esse incremento de vendas é algo que perturba o próprio autor que gostaria que o livro vendesse por si mesmo, não por reação a uma censura. Eu, por meu turno, penso que, após tantas noites escuras que o fascismo trouxe para a humanidade, reagir à censura de um livro, é combater com luz a escuridão daqueles que propagam o medo e o ódio.

            O livro de Jeferson Tenório faz a denúncia do racismo de nossa sociedade, que se faz presente nas piadas, nos comentários em tom jocoso sobre as pessoas negras, ou ainda, na desaprovação ou desconfiança contra estas, etc. Relata de forma ficcional, ou nem tão ficcional assim, pois é difícil saber na obra, o que é fruto da imaginação do autor, ou o que é dele experiência vivida, que as pessoas que não possuem a pele negra, não conseguem, por mais empatia que tenham, sentir a dor do racismo. O escritor insere no papel de narrador, Pedro, um rapaz negro, estudante de arquitetura, filho de Henrique, um professor de literatura de escola pública, também negro e de sua mãe, Martha, uma mulher negra.

            O narrador (Pedro) relata a relação familiar, de seus pais e dele com estes. Pedro revisita os traumas de seus pais, contando a forma como eles lidavam com o racismo numa Porto Alegre racista, algo, que é do conhecimento de todos. Pedro relata as constantes abordagens policiais e o tratamento diferenciado dado em desfavor das pessoas de pele negra. O livro denuncia também a violência policial que vitima principalmente os jovens negros. Na trama, seu pai Henrique, é morto numa abordagem policial. Lembro de ter assistido pela TV, uma abordagem policial ocorrida nessa cidade, mas, poderia ter ocorrido em qualquer lugar do Brasil, afinal o racismo não é exclusividade de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul, na qual, uma vítima negra é presa enquanto seu agressor branco escapa impune, apesar das pessoas que viram o fato, alertarem os policiais sobre o engano, isso foi há cerca de um mês.

            A  pergunta que não quer calar é, por que tal obra incomodou/incomoda tanto? Tendo lido a obra, discordo que seja, pela tal linguagem de baixo nível, pois, a obra é muito bem escrita, e prazerosa ao ler, embora pesada pelo tema retratado. Há algumas poucas falas, se referindo aos órgãos genitais masculino e feminino de forma vulgar, mas, sabemos que isso não é algo que faça corar nossos adolescentes e jovens, pois também as utilizam. Além disso, utilizar essas poucas linhas para caracterizar a obra como um todo, é algo próprio da indústria de fake news ou de desinformação tão cara a alguns grupos políticos de nosso país. É importante lembrar que, a pouco tempo, muitas falas de autoridades de nosso país, em reuniões de governo ou em entrevistas, se fizeram com linguagem até mais chula. Lembro ainda que alguns autores consagrados como Jorge Amado e Darcy Ribeiro também incluíram expressões vulgares em obras suas, nem por isso foram atacados. Seria um caso de "pau que bate em Chico não bate em Francisco"?

            A obra, em alguns momentos trata do tema da paixão e da sexualidade, de forma coloquial, afinal, não se trata de uma aula formal de biologia, mas, de literatura, sendo que ao literatos é concedida a liberdade para criar, portanto, literatura e literatos não cabem na caixinha padrão que os moralistas de plantão querem impor aos demais. O livro faz menção a forma erotizada como a branquitude vê os corpos negros e, isso está relatado até mesmo em música, lembro da marchinha de carnaval "Teu cabelo não nega" de Lamartine Babo. Reitero, no entanto que o tema do livro, não é o sexo, afinal ele faz parte do livro, como faz parte da vida, porém, de forma secundária. A promiscuidade está na mente alienada daqueles que, ou não leram a obra, ou foram incapazes de perceber que o tema central é o racismo estrutural e o trauma que ele causa na vida das pessoas negras.

            Penso que é uma hipocrisia esse ataque ao livro de Jeferson Tenório, afinal, ele não é destinado à crianças, e sim aos estudantes do Ensino Médio, os quais dispõem de celulares ligados à Internet, que lhes foram presenteados por seus próprios pais, e, sabemos, na Internet há de tudo, e nela o adolescente busca tudo aquilo que lhe desperta a curiosidade, e essa nem sempre é relacionada à aula que teve hoje na escola. O livro faz menção aos olhares de estranheza, perante intelectuais e empresários negros bem sucedidos afirmando serem comuns, mas, não deveriam. Sobre isso, o saudoso intelectual Milton Santos (1926 - 2001) assim se expressou "a chamada boa sociedade acredita que está permanentemente reservado um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta". Milton Santos, afirmou ainda, que é muito difícil ser um intelectual negro no Brasil. O racismo não é algo exclusivo do Brasil e, na Europa, para citar um exemplo, torcedores nos estádios entoam impunemente cânticos e provocações racistas contra jogadores negros. A Europa dos finos europeus, não é tão evoluída socialmente, também não somos. Lá a mente colonial, racista e xenófoba, cá a mente escravocrata que pariu o preconceito, a ditadura e a censura para evitar que o menor arremedo de justiça social aconteça nestas paragens, afinal, para que nada mude, é necessário que se imponha o silêncio às vítimas.

P.S. Os governadores, sabemos, quiseram jogar para a torcida. Perderam feio!

Sugestão de boa leitura:

Título: O avesso da pele.

Autor: Jeferson Tenório.

Editora: Companhia das Letras, 2020, 192 p.

 

           

 

 

 


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Cuidado com o senso comum!

 

            Sou admirador do filósofo Sócrates, o qual sabemos há dúvidas se de fato existiu ou se é uma criação do filósofo Platão, enfim, real ou ficção, Sócrates adorava conversar com as pessoas e dizia que aprendia muito com elas independentemente da condição social a que estas pertenciam, assim, penso que podemos aprender muito e também ensinar as pessoas com as quais convivemos.

            Há muitas qualidades a admirar em Sócrates, destaco entre elas a humildade no trato com as pessoas em que demonstrava não ter preconceito de classe e o seu compromisso inquebrantável com aquilo em que acreditava, uma vez que sua sentença foi a morte por envenenamento, pois ao dizer verdades incomodava o status quo estabelecido. No entanto, é impossível deixar de notar o “senso comum” que predomina nas conversas entre as pessoas ao tratar de temas que merecem estudo e reflexão aprofundada. Por senso comum, entenda-se a interpretação espontânea acerca de um fato e que nasce da experiência cotidiana das pessoas podendo esta forma de pensar e agir ser passada de geração em geração e tornar-se tradição. O senso comum carece de investigação e reflexão aprofundada e pode muitas vezes conduzir a interpretações equivocadas da realidade e isso é algo que pode trazer prejuízo para uns e benefícios para outros.

            Certa vez li que duvidar de tudo ou acreditar em tudo, são atitudes igualmente cômodas, pois, nos dispensam do ato de pensar, nada mais verdadeiro! Instituiu-se em nosso país a crença (senso comum) que todo político é desonesto e somente quer fazer o seu “pé de meia” à custa do erário público, verdade seja dita, que muitos de nossos representantes não contribuem para melhorar a imagem da classe política, no entanto, por trás dessa “verdade” aceita por boa parte da população se esconde o fato de que aos maus políticos interessa que a sociedade pense assim, pois esta não vai procurar separar o joio do trigo escolhendo entre os candidatos aqueles que são ficha-limpa e que têm de fato o interesse em fazer algo pelo bem da coletividade acima dos interesses individuais. Também é senso comum que se propaga aos quatro cantos desse país que pessoa de bem não pode ingressar na política, pois se não entrar no “esquema” não consegue vencer, isso também interessa aos maus políticos, pois assim, muitas pessoas bem intencionadas deixam de disputar cargos políticos favorecendo aos mau intencionados que nadam de braçadas na carreira.

            Também já ouvi críticas a respeito de algumas mulheres feministas pelo fato de as mesmas se produzirem com maquiagem e roupas provocantes. Há uma crença que pelo fato de a mulher ser feminista ela deva abolir o sutiã e de preferência queimá-lo, usar roupas de homem, não cuidar da aparência e principalmente, não gostar de homem. Nada mais absurdo, o movimento feminista tem como objetivo a igualdade entre homens e mulheres no que se refere aos salários, à dignidade, à valorização, às oportunidades (no trabalho e na política), e pelo fim do machismo que também é mais um comportamento arraigado na sociedade baseado no senso comum. O movimento feminista existe também para que a mulher não seja refém do seu próprio corpo e para que possa se vestir como se sentir melhor, com roupa de homem ou com roupas que evidenciem a beleza de seu corpo, com o rosto lavado ou maquiado, se deixarmos o senso comum prevalecer não será difícil algum “fundamentalista” religioso (e há vários) em nossa sociedade propor que as mulheres devam usar a burca em terras tupiniquins.

            Outra fala “senso comum” é a de que se o sujeito é defensor do socialismo, ele deve viver na miséria, não possuir bens e não consumir produtos de marca. Se possuir algum bem, ou utilizar algum produto fabricado por multinacional, está então em contradição. Ora, vivemos num mundo capitalista, o Brasil é um país capitalista, não existe uma redoma de vidro para proteger a pessoa do contato com o capitalismo, até afirmei certa vez a um sobrinho, a única solução é ir embora para Marte e este me avisou que é melhor pensar num plano “B”, pois a NASA a agência espacial do país mais capitalista do mundo (EUA) já tem planos para colonizar o planeta vermelho.

            Ocorre que muitas pessoas já chegaram à conclusão que não é possível resolver as contradições do capitalismo com mais capitalismo (neoliberalismo), pois o capitalismo é o veneno que intoxica a sociedade através da acumulação excessiva e da exclusão em massa, dessa forma, a economia capitalista tal como um organismo moribundo vive de crise em crise, sendo estas cada vez mais duradouras. O objetivo do socialismo não é distribuir a miséria e sim a riqueza, pois pretende o melhor dos mundos, um mundo sem miséria, sem fome, uma irmandade de homens. Utopia? Convencionou-se (senso comum) chamar de utópica qualquer pessoa que deseje um mundo melhor para todos e não apenas para a minoria da qual faz parte.

domingo, 7 de abril de 2024

A indefensável defesa da ditadura militar

 

          Qualquer pessoa que tenha um mínimo de estudo e espírito humanitário jamais defenderia uma ditadura que matou e torturou milhares de pessoas. A escravidão e a ditadura militar são as maiores manchas na história deste país. As realizações da ditadura foram importantes para o país, mas também seriam concretizadas por um governo civil.

            Ao contrário do que afirmam alguns, havia corrupção, obras superfaturadas e/ou desnecessárias, (a Transamazônica foi mal planejada e superfaturada, dinheiro desperdiçado, sendo que a maior parte desta estrada foi retomada pela floresta), a construção das usinas nucleares de Angra teve o preço quadruplicado em relação ao valor real e o equipamento comprado da Alemanha era obsoleto. Itaipu custou o dobro da previsão; a BR 277 foi duplicada de Foz a Paranaguá durante o Governo militar (pelo menos é o que dizem os documentos dos empréstimos feitos pelo governo militar lá nos EUA), é isto que você vê quando viaja pelo Paraná? 

            Corrupção havia e muita, mas se a imprensa ou qualquer pessoa denunciasse o risco de ser preso e  torturado era muito grande (leia "Brasil nunca mais!" de Dom Paulo Evaristo Arns), pois, os escândalos eram acobertados pela censura então vigente. Não há entre o povo rico e culto dos países desenvolvidos, o mesmo percentual de pessoas existentes no Brasil a defender uma ditadura sanguinária como a que aqui tivemos. Estes preferem que o dinheiro do governo federal sirva à manutenção dos privilégios de alguns e não para a retirada de pessoas abaixo da linha  da miséria. Caso não saibam não foi os governos civis pós abertura política que colocaram o Brasil entre as piores distribuições de renda do mundo, foi a ditadura que preconizava "é preciso fazer o bolo crescer para depois dividir", o bolo cresceu e a divisão nunca houve!

            As obras dos governos militares foram executadas por meio de empréstimos externos e foram eles que colocaram o Brasil de joelhos perante o FMI e os EUA. Durante o Governo militar a dívida externa cresceu quase 3500%. O salário mínimo perdeu valor, conhecemos a hiperinflação, artistas e intelectuais tiveram que fugir do país, greves eram reprimidas (tentativa de atentado a bomba no Rio-Centro, ou seja, terrorismo de Estado). Criou-se uma mentalidade que fazer protestos e lutar por melhores condições de trabalho é coisa de desordeiros. Temos até hoje um povo apático, não por sua natureza, mas pelo medo e o método educacional imposto pelo regime.

            Fico indignado quando ouço pessoas afirmarem serem terroristas àqueles que lutaram em meio a uma população apática e amedrontada para que você hoje, bem ou mal, pudesse escolher os governantes, escrever e dizer o que pensa. A verdade é que boa parte dos políticos tem projeto de poder e não projetos para o desenvolvimento do país, assim, resta um saudosismo de quando possuíam o total controle do povo brasileiro pelo uso da força e, saudade principalmente do jogo que nunca mudava (sempre estavam no poder).

            Quem defende a ditadura presta um desserviço à história, à nação e ao povo brasileiro, pois apesar de alguns acertos, o saldo daquele período é catastrófico. Além disso, tais pessoas desrespeitam as famílias das vítimas (políticos, jornalistas, professores, estudantes, etc.). Se hoje o Brasil é um país melhor e que está aprendendo a ser democrático, devemos isto a um pequeno, mas valoroso grupo de brasileiros que ousaram lutar pela Democracia, muitas vezes derramando o próprio sangue!

 

sábado, 30 de março de 2024

De que lado você está?

 


            O grande intelectual socialista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) viveu apenas 46 anos e mesmo assim, parte desse curto tempo de vida como preso político. No cárcere registrou suas reflexões que mais tarde foram revisadas e publicadas formando uma imprescindível contribuição para o intelecto humano. Sua obra aponta caminhos a serem trilhados por todos aqueles que desejam uma educação crítica e formadora de lideranças prontas a desempenhar o protagonismo num mundo pensado e organizado pela burguesia e para a burguesia, sendo que esta reserva ao andar de baixo da sociedade, papel meramente figurativo.

            Gramsci em sua poesia “Odeio os indiferentes” afirmava que viver é tomar partido. Em nossa sociedade existem pessoas que procuram ser palatáveis aos diversos segmentos ideológicos. Eu, porém, não ligo a mínima em ter a aceitação de grupos e pessoas cujos ideais não comungo e quero ser lembrado como uma pessoa que sempre deixou claro aquilo em que acreditava, e, que jamais surfou a onda do oportunismo.

            Há alguns dias, como sempre faço, quando me encontro em centros maiores, percorri as livrarias em busca de livros, e eis que me vejo diante de um título sugestivo “De que lado você está?” de autoria de Guilherme Boulos e, na contracapa li a seguinte frase extraída de um de seus artigos no livro: “Jesus, se vivesse hoje, estaria ao lado dos direitos sociais e humanos. Estaria com os sem-teto e os sem-terra, com os negros, os imigrantes, as mulheres violentadas e os homossexuais vítimas de preconceito”.

            Em seguida, nova frase: “a corrupção no atacado é o verdadeiro problema. A burguesia brasileira pede um Estado mínimo e enxuto para o povo, mas, desde sempre teve para si um Estado máximo. Privatizar os lucros e socializar o prejuízo, esta é a sua diretriz”. E penso: Impossível deixar a obra na estante dessa livraria!

             O livro é uma coletânea de vários artigos de Boulos para a sua coluna semanal na Folha de São Paulo. A obra é impecável e assim como ataca a direita entreguista também aponta as falhas dos governos petistas e sua inoperância quanto à realização de reforma estruturais tais como: a reforma urbana, a reforma agrária, a reforma política, a reforma tributária, a reforma dos meios de comunicação e a reforma do sistema financeiro.

            Boulos que contava apenas 33 anos, era dirigente do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), militante da Frente de Resistência Urbana, professor de filosofia formado pela Universidade de São Paulo, especialista em psicanálise e atualmente faz pós-graduação em psiquiatria. Seus artigos empolgam pela lucidez, criticidade e independência.

            Vários de seus artigos poderiam ser aqui mencionados, porém, isto é inviável, volto então ao artigo “Natal sem hipocrisia” em que fala sobre os motivos que fizeram Jesus ser tão odiado pelos poderosos da época: “[...] Jesus defendeu a igualdade e os mais pobres, condenando aqueles que se apegavam demais às riquezas. [...] Defendeu a divisão dos bens, como signo da igualdade social. [...] Partilhou o pão e os peixes entre todos. [...] Enfrentou os preconceitos. [...] Acolheu os marginalizados. [...] Foi misericordioso com as prostitutas. [...] Combateu o ódio e a intolerância”.

            Boulos questiona a profunda desigualdade do mundo atual em que 2% da população mundial detêm mais da metade de todas as riquezas, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 1%. E termina o artigo afirmando que “Se Jesus vivesse hoje, talvez fosse preso e torturado, do mesmo modo que milhares de brasileiros que não há muito lutaram por igualdade e justiça e, que seria sem dúvida crucificado, não por autoridades romanas e sacerdotes judeus, mas, moralmente por muitos dos cristãos que, em seu nome, insistem em combater tudo aquilo que ele defendeu”.

 

Sugestão de boa leitura:

Título: De que lado você está?

Autor: Guilherme Boulos.

Editora: Boitempo Editorial, 2015, 144 p.

sábado, 23 de março de 2024

Um artista da fome

         

 


           

No conto "Um artista da fome" do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) não há nomes, apenas o relato do ofício de cada personagem, tais como os açougueiros, os vigilantes, o inspetor, as moças, as crianças e, claro, o artista da fome e seu empresário. Kafka relata que, antigamente havia um artista que era muito reconhecido, porém, a popularidade de sua arte se perdeu no tempo, o artista da fome. O leitor certamente já ouviu, leu ou assistiu na TV que, no passado eram comuns atrações como mulheres barbadas, anões, etc.

            O artista da fome formava uma dupla com seu empresário, que o impedia de jejuar por mais de quarenta dias. O artista considerava que o jejum era uma arte e se lamentava por não estender o prazo além do que o empresário permitia. Sempre que chegavam em uma cidade, o artista dentro de uma jaula, atraía muitos curiosos que lhe vigiavam noite e dia, procurando desmascarar a "fraude" e, eram incentivados a fazê-lo, inclusive com a oferta de lanches pagos pelo empresário para os "fiscais". No entanto, ele tomava apenas água.

            O empresário cuidava do artista e o artista possibilitava ao empresário seu ganha-pão. Quando o interesse da população caía e não mais rendia algum dinheiro, eles mudavam para outra cidade. O tempo passou e a arte do artista da fome passou a não mais atrair a atenção das pessoas. O artista da fome dispensou o seu empresário e se juntou a um circo, pois lá teria acesso ao público.

            No circo teve direito a uma jaula junto aos animais e, pensava que era incompreendido, que não havia reconhecimento a bela arte de jejuar que tão bem executava. As pessoas passavam por ele no intervalo, liam a placa da jaula que o apresentava, mas, passavam direto para ver os animais. Com o tempo, foi esquecido pelos próprios integrantes do circo.

            O dono do circo viu a jaula com um cartaz cujo letreiro encontrava-se apagado e perguntou aos funcionários, por que aquela jaula estava vazia, eles não sabiam, abriu a porta, mexeu na palhada e encontrou um corpo inerte, cutucou-o e o artista da fome respondeu. O dono do circo perguntou se ainda estava fazendo o jejum, sendo que ele respondeu afirmativamente. Disse que fazia o jejum para que as pessoas o admirassem e, também por que não sabia fazer outra coisa, além disso, nunca encontrou alimento algum que ele gostasse, afinal se alimento assim houvesse, ele se fartaria até ficar pançudo como os demais. Após dizer isso, perdeu a consciência e morreu. O dono do circo pediu que providenciassem um enterro para o cadáver que era tão somente pele e ossos.

            Na jaula, o dono do circo mandou que colocassem uma pantera, que andava agitada pelo pequeno espaço que nela havia e, devorava vorazmente a carne que lhe era destinada para o deleite das pessoas que iam vê-la.

            Conto "contado", fica a interpretação a seu encargo, caro leitor. O conto é curto, mas a discussão do tema dá uma monografia!

 

Sugestão de boa leitura:

 

Título: Um artista da fome.

Autor: Franz Kafka.

Editora: Companhia das Letras, 1998, 120 p. 

sexta-feira, 15 de março de 2024

Lavoura arcaica

 


            O escritor, jornalista e agricultor Raduan Nasser nasceu em Pindorama (SP) em 1935, tem uma obra considerada pequena se considerada a quantidade de seus escritos. Porém, essa obra pequena agiganta-se tendo em vista a qualidade literária que apresenta. O autor foi várias vezes premiado, inclusive com o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa concedido por Portugal e Brasil.

            A cerimônia de premiação (em 17/02/2017) foi motivo de vergonha nacional, pois, o Ministro da Cultura Roberto Freire (PPS) no então governo Temer, descontrolou-se emocionalmente ao ouvir o discurso de Raduan Nasser, que denunciava o golpe de Estado de 2016 ao mundo. Na verdade, Roberto Freire agiu de forma premeditada, e quebrando o protocolo pediu para falar depois de Raduan e o resultado foi um discurso de ódio, combatido pela platéia que buscava dar a Raduan o seu merecido dia de homenagem ante o desequilíbrio do Ministro da Cultura. Enquanto a situação vexaminosa se desenrolava, Raduan serenamente assistia ao triste espetáculo de horror protagonizado por Freire.

A obra “Lavoura Arcaica” (1975) chama a atenção pelo sentido poético e pela descrição minuciosa dos fatos vividos pela personagem André, que ora, apresenta-se quase como um narrador, noutras como o protagonista de uma história que mostra uma família presa a tradições culturais arraigadas no tempo, e a contestação adolescente a esta. A ansiedade como este busca seu lugar na vida saindo de casa, e a ela retornando, com a não resolução de um problema crucial: o amor recíproco que alimenta por sua própria irmã.

            Há quem considere a leitura de Lavoura Arcaica, difícil e até mesmo cansativa, pois, a escrita de Raduan foge do lugar-comum, cada palavra foi meticulosamente escolhida pelo autor para deslumbrar o leitor. Eis um “tira-gosto”: “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo”.

 

Sugestão de boa leitura: 

Título: Lavoura arcaica.

Autor: Raduan Nassar.

Editora: Companhia das Letras, 1989, 200 p.