Powered By Blogger

sábado, 27 de novembro de 2021

Relato de um náufrago

 

            


Quem frequenta o círculo mais íntimo de minhas relações pessoais sabe o prazer que sinto ao ganhar livros. Entendo, no entanto que essa não é uma tarefa fácil, afinal, escolher bons livros para me presentear é relativamente mais fácil do que saber se não o possuo. Não digo isso por ter tantos livros assim, mas, porque sou cirúrgico na aquisição dos melhores (segundo a minha opinião). É verdade que adquiro mais livros do que a minha capacidade de ler e temo que deixarei esse plano sem ter zerado as minhas leituras. Há alguns dias recebi de minha irmã Salette, o livro "Relato de un náufrago" de Gabriel García Márquez (1927-2014). A obra em questão me foi presenteada na língua materna de "Gabo" como Márquez era carinhosamente chamado por seus admiradores.

            Gabriel García Marquez, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra, nas quais figuram como obras-primas "Cem anos de Solidão" e "O amor nos tempos do cólera" e várias outras que apesar de não terem o mesmo destaque, são obras que precisam ser lidas por todo apreciador da alta literatura. No livro "Relato de um náufrago", uma obra no estilo literatura reportagem, o então pouco conhecido jornalista Gabriel García Márquez entrevista e publica o relato do marinheiro Luiz Alejandro Velasco. Velasco fora aclamado herói nacional por ter sobrevivido durante dez dias em uma balsa à deriva no Mar do Caribe. Velasco, juntamente com outros sete marinheiros colombianos caíram ao mar do destróier Caldas, sendo ele o único sobrevivente. A narrativa oficial dava conta que o destróier havia pegado uma forte tormenta que jogara o navio e arremessara ao mar os tripulantes que faziam guarda no convés. Luis nem sequer estava em sua escala de trabalho, havia ido à popa para fumar e fazer hora conversando, se estivesse deitado em sua cama, não teria passado tal revés.

            O livro desmistifica a história oficial de que o próprio Luis Alejandro se beneficiou momentaneamente, mas, que não teve dúvida de por ao chão tão logo foi esquecido pelo governo e pela imprensa. A fama fora efêmera e nada mais lhe rendia, então resolveu por fim à farsa. Procurou um jornalista corajoso, pois, pretendia confrontar a narrativa do governo ditatorial colombiano. Encontrou García Marquez. O náufrago era um excelente contador de histórias e tinha vívida lembrança dos acontecimentos, isso facilitou o trabalho do jornalista. Velasco fazia parte do corpo da Marinha de Guerra da Colômbia e havia ido para os Estados Unidos da América com o destróier Caldas que passaria por um processo de manutenção e modernização de seus equipamentos naquele país. Os marinheiros ficaram nos EUA recebendo instrução para a operação dos novos equipamentos do navio, mas, havia muito tempo livre, que ele e seus companheiros desfrutavam gastando as diárias que o governo colombiano lhes enviava, seja indo ao cinema, aos bares e namorando moças estadunidenses. Na obra são relatadas várias personagens (colegas da marinha e civis estadunidenses) com quem conviveu e, a descrição dos locais a que iam.

            Apesar de ser marinheiro, Velasco tinha grande receio de tempestades em alto mar. O destróier, após vários meses ficara pronto e iria zarpar de volta para a Colômbia, não sem antes ser abarrotado de contrabando (geladeiras, freezers, televisores, etc.). É importante dizer que o navio não havia sido construído para carga e que a mesma, além de excessiva,  fora mal acomodada. Durante o trajeto eis que a carga se desequilibra e ao fazê-lo joga lateralmente o navio arremessando além da carga, oito marinheiros ao mar. Balsas de resgate do navio caem no mar junto com as mercadorias. Com grande esforço, Velasco alcança uma delas, tenta sem sucesso salvar alguns companheiros. Descobrirá mais tarde ser o único sobrevivente. O navio segue seu rumo e chega sem atrasos no destino. Aviões e helicópteros fazem busca por alguns dias, mas, apesar de sobrevoarem a balsa não a avistam. A esperança fica cada vez menor. O náufrago passava calor, frio, sede e fome, momentos nos quais desejara a morte, sem a encontrar ante o corpo que teimava em viver. Passou então a buscar meios de sobreviver, inicialmente evita tomar água salgada e tenta desesperadamente conseguir alimento, com grande sentimento de culpa mata uma gaivota que pousou em sua balsa, mas, se recusa a comê-la. A sorte lhe sorriu quando um peixe grande salta para dentro da balsa, Velasco rapidamente o mata,  porém, resolve lavá-lo no mar, ocasião em que outros peixes o arrancam de sua mão. Luis chegou até mesmo a saber que os tubarões eram animais pontuais, pois, todo dia às 17 horas eles vinham lhe fazer companhia. Velasco temia que eles virassem a balsa.

            O náufrago remava nos horários noturnos e se deitava no fundo da balsa para se abrigar do sol durante o dia, isso enquanto tinha os remos, pois para se defender dos tubarões que rondavam sua balsa, perdeu-os, ficando à mercê da corrente marinha quando já não esperava mais por um resgate. Ignorava para onde a corrente o levava, enxergava água em todas as direções. Mas, começou a ver formas acinzentadas no horizonte e, mais tarde, aves que não se afastam muito da terra e quando se aproximou o suficiente reuniu forças que pensava não mais ter, nadou e quando pôde, caminhou até a praia. Esfarrapado foi avistado por uma moça que dele fugiu por medo. Mais tarde foi encontrado e cuidado por pescadores da vila. As autoridades o buscaram e o colocaram num hospital para recuperar-se sob vigilância de soldados (não podia receber visitas). A narrativa oficial lhe fora imposta e ele se beneficiou dela, mas, a fama efêmera lhe levou, quando esquecido, a procurar o jornalista Gabriel García Márquez. O jornalista e o náufrago pagaram um alto preço por dizer a verdade, algo sempre tão raro e tão caro em períodos de governos ditatoriais!

Sugestão de boa leitura:

Título:  Relato de um náufrago.

Autor: Gabriel García Márquez.

Editora: Record, 2017, 41ª edição, 144 pág.

sábado, 13 de novembro de 2021

A Consolação da Filosofia

 

        


Anício Mânlio Torquato Severino Boethius (480-524) foi um filósofo, poeta e político romano que viveu na época marcada pelo declínio do Império Romano. Boécio tinha grande apreço pela cultura e literatura grega e tinha como grande meta de vida traduzir para o latim a obra completa dos filósofos gregos Platão e Aristóteles. Anício tinha senso e valores de justiça muito apurados, também por isso, condenava a exploração dos pobres. Era considerado sábio e sua cultura tida como profunda, provocava grande admiração e, por isso não tardou a ascender na escala social ao tornar-se cônsul e membro do Senado aos 30 anos durante o reinado de Teodorico, o Grande. Casado com Rusticiana, filha de seu mentor Quinthus Aurelius Symmaehus chegou a ver seus dois filhos serem alçados ao Senado. Vivia momentos de profunda felicidade até que a Roda da Fortuna girou.

            Em 522, motivado por seu apurado senso de justiça defendeu o senador Albino que havia sido acusado de conspiração para restaurar a república. O senador Albino desejava aquilo que era vontade de grande parte do povo, a reunificação do Império Romano e o retorno dos dias gloriosos. Ao assim agir, Boécio foi acusado como traidor e preso, porém, ao contrário daqueles que em tal desgraça caíam, não foi executado rapidamente. Encerrado durante longo tempo em uma masmorra imunda, ele que era bem nascido, filho de família importante, sendo que também seu pai fora cônsul, passava por sessões de torturas diárias. Seus familiares e amigos fizeram o que era possível para livrá-lo, em vão. Políticos de mau caráter e de atitudes desonestas testemunharam falsamente contra ele. As calúnias aventadas contra ele agravaram sua situação. Aqueles que lhe julgavam estavam mais interessados em sua condenação do que na aplicação da Justiça.

            Afastado de sua família, com uma rotina diária terrível de humilhações e dores resultantes das torturas na masmorra, resolveu recorrer à mulher mais bela, porém austera, que em sua vida conheceu, a Filosofia. Por meio de tabuinhas e uma cunha registrou suas elucubrações filosóficas, tendo o cuidado de entregar tais tabuinhas a parentes, nela a sua obra-prima: "A Consolação da Filosofia". Enquanto esperava o dia da sua execução, procurou atingir um estágio de grande elevação filosófica e psicológica, certamente para evitar que fraquejasse ou enlouquecesse e visando manter elevado seu moral e alcançar a felicidade, a paz, e assim, se preparar para confrontar a morte. Ao terminar o livro, estava num estado de profunda paz. Apesar de sua família ter se convertido há um século ao cristianismo, a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa foram muito cuidadosas e somente o declararam mártir em 1800, quando foi beatificado por ambas. Tal cuidado se deve ao fato de que sua obra é a mais pura expressão da cultura greco-romana e apesar de sua imensa fé em um deus, jamais deixa claro ser o deus cristão.

            A obra é escrita na forma de prosa, mas poeta que era, Boécio entremeia poesias atinentes ao tema em reflexão. É interessante observar que ele não tinha obras à sua disposição para consultas na masmorra. A obra que produziu é resultado de suas leituras anteriores à prisão e de sua reflexão. Na obra poetizou suas dores, as injustiças sofridas, a fortuna dos desonestos e entabulava diálogos com a Filosofia, bela e austera, ela não tinha receio em lhe dar reprimendas afirmando-lhe que todo homem que abraça a Filosofia é um estranho no mundo a ser violentamente rejeitado, mas, que ele não pertencia a esta pátria, mas, à pátria da Filosofia e, esta não bane seus filhos. Boécio aconselhado pela Filosofia chega à conclusão que o Universo é cosmos, ou seja razão, ordem, e não caos, e que a desordem emocional é o esquecimento de quem ele realmente é. Também concluiu que não se deve dar valor demais ao que lhe pode ser retirado e que aquilo que realmente é dele ninguém pode tirar. A falibilidade da Justiça lhe tirou a vida, mas a Filosofia que Boécio trouxe à luz é cosmos a se contrapor ao caos das mentes rasas e de suas rasas visões de mundo em todos os tempos. De seu sofrimento, Boécio deixou um legado de luz para a humanidade.

Sugestão de boa leitura:

Título: A Consolação da Filosofia.

Autor: Boécio.

Editora: WMF Martins Fontes, 2012, 2ª edição, 4ª reimpressão,  200 pág.

sábado, 6 de novembro de 2021

Sinal amarelo para o agronegócio brasileiro

 

            Há uma discussão em voga na Alemanha, a questão da devastação ambiental em território brasileiro para a expansão da fronteira agrícola e as consequências dela resultantes. Há movimentos atuantes no seio da sociedade alemã que propagam a ideia de que aquela nação precisa parar de comprar soja brasileira e estimular receitas caseiras para a produção de ração animal. Em uma reportagem afirmavam que esta ração caseira ainda é mais cara do que a importação da soja, mas, que tende a ficar mais barata e, que mesmo que isso não ocorra, o fato de não contribuir para a concentração da terra no Brasil resultante da expropriação das terras de indígenas e pequenos agricultores e, principalmente, para a devastação de frágeis ecossistemas como o Cerrado e a Amazônia já torna válido o aumento do custo da ração.¹

            Nos Estados Unidos da América tramita um projeto de lei que certamente será aprovado, pois, está em consonância com a política externa de seu atual governo². O projeto pretende impedir a aquisição de produtos que tenham como origem áreas devastadas ilegalmente ou que deveriam ser preservadas, mas, sempre há a possibilidade de haver rescaldo e prejudicar quem trabalha em terras legalizadas. Entende isso quem vacina o seu gado bovino e é prejudicado pelo foco de febre aftosa (em algum canto distante do Brasil) por quem compra a vacina, mas, não aplica em seu rebanho, mesmo sendo o Brasil, um país continental. Sobre a questão, o general Hamilton Mourão, atual vice-presidente do país afirmou: "A maioria das pessoas que têm uma consciência ambiental maior, são de esquerda" e concluiu dizendo que "o governo federal é de direita e que os produtos exportados não são de áreas de preservação que teriam sido desmatadas". Que a esquerda tem no seu escopo ideário, maior preocupação com o meio ambiente, é inegável, porém, esse discurso típico do século XX não cola mais. O mundo mudou e o governo Bolsonaro age de forma anacrônica, pois se vivemos uma nova guerra fria, essa disputa não se faz pela contraposição capitalismo x socialismo / Ocidente x Oriente. Apenas mentes doentes como as que povoam o governo Bolsonaro pararam no tempo e, isso porque são vazias de conteúdo e de entendimento geopolítico. Bolsonaro faz grande mal ao país. O agronegócio brasileiro ainda vai pagar a conta por seus desvarios ou de seus comandados ao dirigir críticas ideológicas e fake news à China, o maior comprador de produtos brasileiros e, isso não é difícil de entender,  afinal, um dono de loja pode não gostar de seu principal cliente, mas, não o critica publicamente para não perdê-lo.

            Há alguns dias assisti à entrevista de um representante do agronegócio, que afirmou, com razão de que o país conta com uma das melhores e mais completas legislações ambientais do mundo. Disse ainda que o problema está na falta de fiscalização e de punição ao devastadores ambientais. Argumentou que o mundo inteiro vigia atentamente o que acontece com a Floresta Amazônica, mas, que nada fala sobre a Amazônia Azul, pois, não pode falar, afinal o mundo inteiro maltrata os oceanos e mares, os verdadeiros responsáveis pela liberação de oxigênio para a atmosfera. Tive que concordar com ele, os oceanos estão doentes por conta de toda a poluição gerada pela humanidade na forma de lixo sólido ou efluentes. O resultado, corais morrendo, espécies marinhas entrando em extinção devido a superexploração. Mas, não podemos negar que o Governo Bolsonaro tem grande culpa, pois ao promover uma fiscalização ambiental pífia e, com punições pouco rigorosas ou nulas, visando com isso agradar o agronegócio (e agrada), acabará por prejudicá-lo.

            Os capitalistas, independentemente de sua origem praticam um jogo pesado e sujo, pois, todos afirmam defender o livre-mercado e a eliminação/redução de barreiras que impeçam a livre circulação de mercadorias e serviços. Na prática, não é bem assim, os países mais capitalistas do mundo ficam o tempo todo vasculhando as ações alheias para encontrar meios de sabotar/eliminar vantagens específicas de outras nações aplicando barreiras sanitárias (nem sempre justas), subsídios, tarifas, cotas ou sanções. O governo federal e o setor do agronegócio precisam entender que discursar com base em fake news não cola, afinal, a ONU e os países têm acesso a imagens de satélite de alta resolução. Os capitalistas em geral (não apenas o agronegócio), precisam compreender que é cada vez maior a parcela da população (principalmente no mundo desenvolvido) que ao comprar produtos, procura saber como a empresa produtora trata o meio ambiente e se age com responsabilidade social. O Brasil terá que mostrar ações efetivas quanto à preservação ambiental, à fiscalização e ao rigor das punições, pois as nações não irão aceitar apenas discursos, ainda mais, de um governo cuja imagem no exterior é a pior possível!

FONTES:

1. Até quando a Alemanha continuará comprando soja do Brasil? - Disponível em https://www.dw.com/pt-br/at%C3%A9-quando-alemanha-continuar%C3%A1-importando-soja-do-brasil/a-59112846 - Acesso em 02 de Novembro de 2021.

2. EUA podem barrar importação de produtos oriundos do desmatamento ilegal - https://www.ecodebate.com.br/2021/10/07/eua-podem-barrar-importacao-de-produtos-oriundos-do-desmatamento-ilegal/ - Acesso em 02 de Novembro de 2021.

3. Estados Unidos e União Europeia discutem criar leis que podem prejudicar agronegócio brasileiro. Disponível em https://www.canalrural.com.br/noticias/eua-e-uniao-europeia-estudam-criar-leis-que-podem-prejudicar-agro-brasileiro/ - Acesso em 02 de Novembro de 2021.