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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O Morro dos Ventos Uivantes (com spoiler)



               
Emily Jane Brontë (1818-1848) foi uma escritora e poetisa britânica. Quinta filha de Patrick Brontë, pastor da Igreja Anglicana, tinha como irmãs Maria e Elizabeth (que faleceram devido à febre tifóide), Charlotte e Anne. Seu único irmão, Patrick Branwell, foi estimulado a desenvolver seus talentos artísticos na pintura. É dele a única pintura que retrata Emily Brontë e suas irmãs Anne e Charlotte. Nesta pintura sobre tela, Branwell também aparecia, porém, dela removeu sua imagem. O irmão de Emily sofria perturbações psicológicas e, acabou por se entregar ao alcoolismo, frustrando as expectativas do pai que desejava vê-lo na Academia de Belas Artes. Charlotte, Emily e Anne escreveram e publicaram romances numa sociedade vitoriana que considerava que a carreira literária era algo destinado aos homens. As irmãs Brontë, a contragosto, tiveram que utilizar pseudônimos masculinos, dessa forma, a publicação original de O Morro dos Ventos Uivantes teve em sua capa o nome de Ellis Bell na autoria. As três irmãs publicaram seus livros utilizando o mesmo sobrenome (Bell).
            Emily, devido à tuberculose, teve sua vida ceifada precocemente (30 anos de idade), porém, isso não a impediu de ter seu único romance publicado incluído na lista dos maiores clássicos da literatura mundial. O livro vendeu relativamente bem desde sua primeira edição, porém, com o passar do tempo suas vendas aumentaram progressivamente. A obra causou grande polêmica na sociedade inglesa, pois, mostrava personagens cujas personalidades eram dúbias, ora gentis, ora perversas. Não foram poucas as vozes a sugerir que todos os exemplares do livro deveriam ser incinerados. Talvez isso se deva ao fato de que a autora, por meio das personagens que criou em sua obra, desmistificou a hipocrisia da sociedade inglesa, ao mostrar que vistos de perto, ninguém ou quase ninguém, tem um espírito realmente bondoso e desinteressado. É ainda mais interessante observar que Emily era reclusa e muito tímida, pouco afeita a dialogar com as pessoas, porém, era autodidata e muito observadora, sendo capaz de traçar um perfil do caráter das pessoas que conhecia e de ler as entrelinhas das suas falas.
O romance “O Morro dos Ventos Uivantes” teve várias adaptações para o cinema e para a TV. O autor destas linhas assistiu a adaptação televisiva de 2009, que, embora razoável, com poucas alterações em relação a trama original, peca na escolha de um ator branco para a personagem principal (Heathcliff) que não condiz com a descrição feita pela autora (pele morena, aparência de cigano). A trama é contada por dois narradores, o inquilino Lockwood da Granja de Thrushcross e a governanta Nelly Dean. Lockwood resolve visitar Heathcliff, que lhe alugou o imóvel e que mora na propriedade vizinha conhecida como o Morro dos Ventos Uivantes. Pretende com tal ato estabelecer relações de amizade, porém, observa que as pessoas da casa são esquisitas e embrutecidas. Uma forte nevasca ocorre e o obriga a ficar na casa, para o desprazer dos seus anfitriões. No dia seguinte, após uma noite mal dormida, Lockwood retorna à casa da granja e começa a questionar a governanta Nelly sobre os estranhos sujeitos da casa do Morro dos Ventos Uivantes. Ela lhe conta que aquela propriedade originalmente era do Casal Earnshaw que tinha como filhos Hindley e Catherine. O Sr. Earnshaw ao voltar de uma viagem trouxe um garoto que vagava pelas ruas sem ter ninguém por ele e resolveu adotá-lo. Deu ao garoto o nome de Heathcliff. O irmão adotivo nunca o aceitou e passou a importuná-lo de todas as formas humilhando-o. Porém, sua irmã Catherine se identificou com ele e tornaram-se excelentes companheiros de travessuras. Quando os irmãos entram na juventude, o Sr. Earnshaw morre, e, Heathcliff perde o seu protetor.
A propriedade passa a ser administrada pelo filho Hindley que passa a tratar o irmão adotivo como um serviçal. Hindley casado com Frances tem um filho chamado Hareton. Catherine e Heathcliff se descobrem apaixonados e ele planeja inúmeras vezes a fuga do casal, porém, ela apesar de amá-lo, tem o sonho de um casamento que lhe faça rica e Heathcliff nada possui, além de que não vê nele o marido que idealiza. Na propriedade vizinha, a Granja Thrushcross mora a rica família Linton. Ao espionar a casa, Catherine é mordida pelo cão de guarda e é atendida por Edgar Linton. Algum tempo depois, Edgar lhe pede em casamento e Catherine pede tempo para pensar. Ao saber disso, Heathcliff fica indignado e vai embora do Morro dos Ventos Uivantes. Algum tempo depois, Heathcliff transformado, retorna com o firme propósito de se vingar de todos que o maltrataram e reaver seu amor, porém, encontra Catherine casada com Edgar Linton, algo com que ele não se conforma.
A volta de Heathcliff mexe com os sentimentos de Catherine que jamais deixou de amá-lo. Heathcliff adquire a propriedade do Morro dos Ventos Uivantes e, se vinga humilhando Hindley e seu filho Hareton de igual forma como fora no passado. Ao perceber que Isabella, irmã de Edgar Linton está por ele apaixonada, convence-a a fugir com ele. Não a ama, mas, deseja ferir Edgar e Catherine, e, se possível, esquecer Catherine. Não consegue e passa a maltratar Isabella que foge de casa, e, diante da recusa de seu irmão em aceitá-la de volta na Granja Thrushcross, muda-se da região. Catherine dá a luz a uma filha de Edgar e morre. A Filha chama-se Catherine (Cathy). Isabella descobre que está grávida de Heathcliff, tem o filho ao qual é dado o nome de Linton e, morre algum tempo depois. Edgar manda buscar o sobrinho, mas, Heathcliff exige que seu filho lhe seja entregue. Edgar Linton, doente, vê Heathcliff estimulando os jovens a se apaixonarem e tenta afastá-los. Edgar morre e Heathcliff planeja se apossar da Granja Thrushcross. Os jovens pressionados por Heathcliff se casam, mas, logo o jovem e doente noivo morre. O testamento estabelece que seu pai Heathcliff é o único herdeiro. Paro por aqui, já dei spoiler demais! Recomendo fortemente a obra!

Sugestão de boa leitura:

Título: O Morro dos Ventos Uivantes.
Autora: Emily Brontë.
Editora: Principis, 2019, 444 p.
Preço: R$ 15,92.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Brasil não é para principiantes – parte 1



               
A frase título deste artigo, atribuída ao maestro Tom Jobim (1927-1994) dá a tônica do que é este país. Como entender este país e seu povo? Uma terra rica em recursos nacionais, a oitava economia mundial, um verdadeiro titã na produção de riquezas e de injustiças sociais. O general francês Charles de Gaulle certa vez afirmou: o Brasil não é um país sério. Tenho que concordar: não é mesmo! Em vários países do mundo a elite econômica local conduziu os esforços da população no caminho da prosperidade, não digo com isso que essas elites eram/sejam altruístas e desprovidas do egoísmo que caracteriza a alma liberal no campo econômico. Digo que essas elites tinham/têm a sensatez para não fazer furos no casco do próprio navio de modo que este afundasse/afunde, dessa forma, o alvo de suas pilhagens eram/são aqueles navios cujas bandeiras denotam a sua realidade periférica no capitalismo internacional. Nem por isso se pretende negar o notório fato da falta de patriotismo das gigantes transnacionais e do caráter vadio do capital especulativo, mas, evidenciar a falta de patriotismo, ou, de espírito revolucionário de nossas elites que preferem ver o Brasil no atraso social e econômico a perder o controle sobre a senzala.
O Estado encontra-se em disputa no mundo todo, o Brasil não é exceção. Alguns o querem mínimo, pois, entendem que educação, saúde, assistência e previdência social não são direitos básicos do cidadão como outros defendem, mas, produtos a serem comercializados pela iniciativa privada para quem puder pagar. O surreal é ver trabalhadores, portanto, pobres que não podem pagar pela educação básica ou superior no sistema de ensino privado defendendo o fim da educação pública gratuita. Outros reclamam dos serviços do SUS e defendem o seu fim quando deveriam exigir mais investimentos públicos e melhores condições de trabalho aos profissionais e com isso melhor qualidade de atendimento. Grande parte dessas pessoas não tem condições de pagar por procedimentos caros e não possuem planos de saúde privados. Não dá para chamar de sensata uma pessoa que assim age.
Neste estranho país em que há um projeto para taxar as grandes fortunas que se encontra engavetado no Congresso Nacional há mais de trinta anos, pois, se entende que a elite econômica nacional (a parcela de 1% mais rico do país) já paga impostos demais, o que não corresponde à verdade, pois, a tributação é regressiva haja vista que ocorre sobre o consumo, o que atinge majoritariamente a classe trabalhadora e isenta de tributação os dividendos da parcela abastada da sociedade. O que soa como uma piada, um escárnio, é a mais triste e infame realidade, o governo pretende taxar o seguro-desemprego e com isso criar uma espécie de “Imposto Sobre Grandes Pobrezas”. O cidadão perdeu o emprego e o governo vai confiscar uma parte do mísero valor que este recebe na forma de seguro-desemprego para bancar mais empregos precarizados aos jovens. Aliás, a precarização é a marca deste governo, não à toa, Bolsonaro disse que sua missão é destruir o que o PT construiu. É verdade que os governos petistas cometeram erros, mas, não se pode a guisa de ser anti-PT, ser anti-Brasil e anti-si próprio, há que se conservar (ou deveria) os avanços conquistados no período e que não foram poucos.
Nestes tempos de pós-verdade, em que os fatos já não importam, as pessoas buscam no supermercado midiático, a verdade que lhes convém, a que lhes dá razão, embora a palavra razão, neste caso, nada tenha de racional. A política se tornou um Fla-Flu, um Gre-Nal, pois, não há racionalidade. Quem até ontem defendia a bandeira de mais investimentos em educação, saúde, etc. hoje, assiste calado ou defende as iniciativas governamentais de redução de investimentos no setor público. É preciso lembrar que países com grande parcela da população em estado de pobreza são os que mais necessitam da ação do Estado, e defender isso não faz de alguém um comunista, mas, uma pessoa verdadeiramente humana. Também é interessante observar que quem empunhava a bandeira da luta contra a corrupção, hoje se cala ante os escândalos de personagens públicas do governo ou de sua base de apoio. Neste país surreal, muitos cristãos falam de Deus, mas, não vivem os ensinamentos de Jesus Cristo. Para muita gente, pensar além do próprio umbigo, ou se preferir, além de seu próprio bolso parece ser uma tarefa equivalente a escalar o Monte Everest. Há pessoas que até gostam de fazer doações em épocas natalinas, mas, trabalham e votam com o intuito de que a justiça social jamais ocorra! E isso vai contra o que o mestre Paulo Freire (1921-1997) nos ensinou: “a justiça social precisa vir antes da caridade”.

domingo, 17 de novembro de 2019

Primeiro amor




               
Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) foi um prosador, poeta, dramaturgo, tradutor e ensaísta russo. Juntamente com Tolstói, Gogol, Tchekhov e Dostoiévski formam o primeiro time da literatura clássica russa. Turguêniev nasceu rico, a grande propriedade rural de sua mãe contava com cinco mil servos, os quais ele desobrigou de suas funções antes que o próprio Czar Alexandre II o fizesse em toda a Rússia. Apesar de ter nascido em uma família abastada, Turguêniev ganhou projeção com livros de forte cunho social e político. Seu primeiro livro com grande projeção foi “Memórias de um caçador” (1852) e nele denunciava o regime da servidão na Rússia o que demonstrava o espírito do literato que travou contato com importantes intelectuais russos, dentre eles, o teórico e militante anarquista Bakúnin. Essa obra e a atenção que chamou para si ao denunciar injustiças sociais por meio de panfletos resultou em sua prisão, porém, conta-se que o referido livro influenciou o Czar a extinguir tal sistema no país.
            Turguêniev formou-se bacharel em filosofia pela Universidade de São Petersburgo. Sem problemas financeiros a lhe atormentar a existência passava parte do ano na França, e, parte na Rússia. Jamais se casou, porém, teve um relacionamento que durou toda a vida com a cantora hispano-americana Pauline Viardot-Garcia. O detalhe é que ela era casada. Relacionou-se com algumas de suas servas e teve de forma ilegítima sua única filha, a qual foi dado o nome de Paulinette. Na Europa, Turguêniev estimulou a tradução e a publicação de autores russos, mesmo aqueles que lhe criticavam por julgá-lo mais europeu do que russo ou por ser dúbio quanto ao seu posicionamento ideológico. Isto se devia ao fato de que o escritor russo era contrário aos extremismos ideológicos. Em 1883, um câncer agressivo o deixou acamado, e, em poucos meses o matou. Acredita-se que a obra “A morte de Ivan Ilich” de Liev Tolstói tenha sido fortemente influenciada pelo trágico destino de seu compatriota e amigo Turguêniev.
            A obra “Primeiro amor” é na verdade uma novela, pois, tem cerca de cem páginas. Nela o autor explora muito pouco as questões sociais pelas quais ficou conhecido em outras de suas publicações. Turguêniev não teve grandes pretensões que não explicitar a complexidade da descoberta do amor na juventude e os sentimentos dele resultantes, e, que se fazem inesquecíveis, pois, assim é o primeiro amor de qualquer pessoa, mesmo que ao invés de alegria e conquista, este resultou em frustração e vergonha. A história começa com um jantar, sendo que a maioria dos convidados já tinha ido embora, e, para entreter os restantes, o anfitrião os desafia a contar a história de seu primeiro amor. Todos o fazem, quando chega a vez de Vladimir Petróvitch, este afirma que sua história é incomum e solicita tempo para que a escreva num caderno e conte numa próxima reunião do grupo. A contragosto eles aceitam. Vladimir conta que quando tinha dezesseis anos seus pais foram passar uma temporada na datcha (casa de campo, fazenda, chácara) e a sua vizinha era uma princesa viúva e falida que sonhava ganhar um processo judicial para tirar os pés do barro. Essa senhora tinha uma filha de vinte e um anos de idade. O rapaz ao ver a moça encantou-se com sua beleza.
A moça sabia o poder que possuía sobre os homens, seduzia-os, fazia com que fizessem seus caprichos, mas, jamais escolhia um por namorado, enfim, agia como uma verdadeira coquete. Afirmava que não pretendia se apaixonar por ninguém. Ao perceber o efeito que causava sobre Vladimir, começou a se divertir com ele, às vezes o tratava como se fosse uma criança, noutras o seduzia. Sua mãe não gostava das princesas, considerava-as vulgares e queria que o rapaz se mantivesse longe delas. Seu pai agia com superioridade em relação às vizinhas. A mãe de Vladimir, muito rica, bem educada, porém, tinha um gênio difícil. O pai, de origem humilde, tinha uma boa formação intelectual e era dez anos mais jovem que sua mãe. O pai tinha um comportamento estranho, ora ausente, ora sufocava o filho com sua atenção. O rapaz era muito cobrado a se dedicar aos estudos visando seu ingresso na universidade. E estudar não era o foco de Vladimir, pois, sua atenção toda estava na moradora da casa vizinha. Sua preocupação estava em conquistá-la e em afastar seus rivais, os rapazes que também eram iludidos pela moça. Mostrar-se homem, apesar da pouca idade e tentar caminhar com segurança no terreno movediço da primeira paixão. Paro aqui para não dar spoiler, mas, digo que esta obra tanto é leve na forma como é escrita, como pesada na trama desenvolvida. Parece despretensiosa, porém, traz à luz experiências vividas felizes ou não de pessoas que do alto de sua maturidade lamentam, riem ou se regozijam da forma como agiram quando tiveram o coração repentinamente assaltado por um sentimento até então desconhecido.

Sugestão de boa leitura:

Título: Primeiro amor.

Autor: Ivan Turguêniev.

Editora: Penguin Companhia, 2015, 108 p.

Preço: R$ 32,90.     

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A morte da verdade



               
Já escrevemos algumas vezes neste espaço sobre o tema da pós-verdade. A ele retornamos, pois, essa é a preocupação central do livro da crítica literária estadunidense Michiko Kakutani (1955). Impossível ler a obra sem ver semelhanças entre o cenário de fundo estadunidense e o brasileiro, ou seja, a campanha e o governo de Donald Trump e de Bolsonaro, pois, se fossem criações literárias estariam classificadas como distopias. O livro cita um comercial da CNN que mostra a foto de uma maçã e a voz de um narrador que afirma: “Isto é uma maçã. Algumas pessoas vão tentar dizer que é uma banana. Talvez elas gritem repetidas vezes: ‘banana, banana, banana’. Talvez elas escrevam BANANA em letras maiúsculas. Talvez você até mesmo comece a acreditar que é uma banana. Mas não é. Isto é uma maçã.” Sobre isso, a autora cita a frase do ex-senador Daniel Patrick Moynihan: “Todo mundo tem direito de ter suas próprias opiniões, mas, não seus próprios fatos”.
Vivemos um momento em que uma parcela da sociedade acredita que não há história, nem ciência ou verdade, tudo é mera opinião. Verdades científicas passaram a ser contestadas tendo como argumentação o senso comum. Se a soma de dois mais dois é igual a quatro e do ponto de vista restrito da matemática isto é uma verdade universal inquestionável. Apontar resultado diferente soaria ridículo, porém, não faltam pessoas a falsear a história, a verdade e a apontar a extensa pesquisa de intelectuais como mera opinião. O intelectual lê centenas de artigos e livros, não raro dedica toda sua vida para entender um objeto de estudo, e, um sujeito que não leu mais que gibis em sua adolescência e revistas/sites de fofoca na idade adulta, sentindo-se empoderado pelo computador/celular ligado à Internet o contrapõe sentindo-se o dono da única verdade. A dele!  Não é à toa que temos os terraplanistas, os negadores do holocausto, do aquecimento global, da evolução das espécies, ou ainda, os que afirmam que o nazismo era de esquerda, que os governos petistas (neoliberais) instalaram o socialismo no país e quebraram o Brasil, quando à luz da razão não é possível afirmar nada disso. Nas palavras de Umberto Eco (1932-2016): “a Internet deu voz a uma legião de imbecis com o mesmo direito à fala que um ganhador do prêmio Nobel e promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”
             As pessoas se isolam dentro de suas comunidades virtuais das redes sociais, conversam geralmente com as pessoas que pensam de igual forma e, escolhem no supermercado midiático a “versão” da verdade que lhe é mais palatável. Quando há o encontro com aquele que tem uma opinião divergente, os insultos ocupam o lugar da argumentação e, quando esta se realiza, demonstra a pobreza intelectual característica de quem despreza a razão. Há na atualidade um desprezo à ciência, à universidade, aos professores, ao poder Judiciário, à imprensa livre. Trump nos Estados Unidos profere a média de 7,6 mentiras diárias e ataca as instituições (a imprensa, o poder legislativo, o poder judiciário, etc.) e nega a veracidade de dados oficiais. Segundo Kakutani isto tem erodido fortemente a democracia estadunidense. Da mesma forma, o clã Bolsonaro age no Brasil. O filho do presidente (Eduardo Bolsonaro) afirmou que bastava um jipe e um soldado cabo para fechar o Supremo Tribunal Federal, recentemente afirmou que um novo AI-5 seria a resposta caso as ruas fossem tomadas pela oposição. Não há uma pesquisa sobre quantas mentiras o presidente brasileiro conta diariamente, mas, é por todos sabido a sua prática de culpar a imprensa alegando ter sido mal interpretado, ou ainda, por se desculpar à tarde ou à noite pelo que disse de manhã.
Tanto Trump como Bolsonaro utilizaram em suas campanhas frases curtas exortando valores tradicionais, além do medo e do ódio, e, fizeram uso de fake news direcionadas por bots a um público específico previamente selecionado pela inteligência artificial. Steve Bannon, a mente por trás da Cambridge Analytica ajudou a eleger Trump e tem ligações com o clã Bolsonaro. A Cambridge Analytica trabalha com mineração de dados e a divulgação de mensagens específicas por meios de bots que interagem como se humanos fossem com as pessoas escolhidas reforçando nelas ideias e convicções pré-constatadas dentre elas o medo e o ódio ao imigrante nos Estados Unidos, e o medo e o ódio aos comunistas, aos petistas, aos esquerdistas no Brasil. Kakutani fala em seu livro que as eleições que elegeram Trump foram influenciadas pela Rússia por meios cibernéticos ao disseminar fake news contra Hillary Clinton e promover Trump por meio da disseminação de mensagens sobre questões como imigração, religião e raça visando ampliar a divisão entre os eleitores que não têm o hábito de averiguar a autenticidade da informação. Segundo Kakutani, o alvo ideal das fake news não é o fascista convicto ou o comunista, mas, o cidadão comum, que não tem o hábito de checar a veracidade da informação que recebe e que, assim pode ter sua visão de mundo moldada conforme desejam os manipuladores. Triste época! Concluo indicando fortemente a leitura desta obra!

Sugestão de boa leitura:

Título: A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump.
Autor: Michiko Kakutani.
Editora: Intrínseca, 2018, 270 p.
Preço: R$ 19,90 – R$ 23,90.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O corcunda de Notre Dame



               
No dia 15 de abril deste ano, os jornais divulgaram o enorme incêndio que atingiu a catedral de Notre Dame em Paris, cujas consequências não foram ainda maiores devido à eficiência do corpo de bombeiros que evitou que o edifício colapsasse. Essa mesma catedral conquistou fama internacional devido à obra do escritor francês Victor-Marie Hugo (1802-1885). É também graças ao célebre escritor que a catedral não veio abaixo quando várias outras construções históricas foram desmanchadas para dar lugar à modernidade, seja na forma de prédios ou de avenidas mais largas. Aliás, Victor Hugo, não se conformava com a modernização de Paris estar sendo feita colocando abaixo edifícios que em seu ver constituíam monumentos históricos e arquitetônicos insubstituíveis. Vitor Hugo foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos. Em sua grandiosa obra, destacam-se os livros: Os miseráveis (1862) e O corcunda de Notre Dame (1831) publicado originalmente com o título Notre Dame – Paris, 1482. Em muitos países, a obra é publicada com este título, porém, com a supressão da data. Por questões comerciais, em vários países o corcunda foi alçado ao papel principal, porém, há várias personagens principais na obra, o arquidiácono Claude Frollo, o corcunda Quasímodo, a cigana Esmeralda, o ator e escritor de peças teatrais Gringoire, o comandante militar Phoebus, a reclusa Gudule, porém, a personagem principal é a Catedral de Notre Dame, pois, é sobre ela e o seu entorno no qual se desenvolve a trama que Hugo após fazer uma grande pesquisa histórica buscou retratar.
            Na obra em questão, Hugo busca mostrar uma faceta da sociedade parisiense no período medieval. Visa também mostrar que, inversamente ao que se pensa, o medievo foi um período de produções filosóficas e artísticas importantes. Na obra, o autor parece nos conduzir pela mão em meio às ruas de Paris daquele longínquo ano de 1482, algo que o era até para ele, pois, viveu no século XIX. A riqueza de detalhes com que descreve as ruas de Paris e os prédios que havia, os quais sequer chegou a conhecer, torna evidente a esmerada pesquisa que realizou. O detalhismo com que descreve a Paris de 1482 pode se tornar cansativa para alguns leitores, para outros, como é o meu caso, trata-se de puro deleite, pois, ao ler, as imagens se formam na mente como se lá estivesse caminhando e sendo apresentado à cidade por Victor Hugo. É certo que Hugo procurou descrever minuciosamente a arquitetura da Paris de 1482, pois, sabia que diante da destruição de muitas maravilhas arquitetônicas, resgatá-las em sua obra constituía a única forma de fazer com que elas não caíssem no esquecimento total. Dessa forma, descreveu em detalhes as mudanças pela qual a catedral de Notre Dame passou por causa de saques e reformas mal feitas devido o descaso e despreparo dos profissionais nela envolvidos visando registrar para a posteridade o significado arquitetônico e cultural para a humanidade da catedral construída entre 1163 a 1345 que mescla o estilo gótico e românico.
Na obra, Hugo mostra a divisão da Paris de 1482 (que ainda pode ser facilmente localizada na planta da Paris atual) em três partes que simbolizavam também a divisão de poderes da época: a Île de La Cité (ilha onde fica a catedral e que simbolizava a Igreja Católica), a Université (onde até hoje ficam antigas e famosas universidades como a Sorbonne) e, a Ville (que representava a Coroa) e também onde ficavam os senhores feudais (o rei não tinha o poder absoluto sobre a cidade). No meio, espremidas e oprimidas ficavam as pessoas comuns. Como o livro tinha objetivo comercial, afinal, se tratava da encomenda de uma obra sobre o medievo feita pelo seu editor, Hugo, bem ao seu estilo, não deixou de fazer uma crítica social à Igreja e à Coroa, enfim, ao sistema social vigente e as injustiças dele resultantes, porém, incluiu na trama um sacerdote angustiado pelos votos de castidade feitos a Deus e o desejo ardente que sente pela bela cigana Esmeralda, por quem também, o corcunda se apaixona, esta por sua vez se apaixona por Phoebus, um militar. As personagens construídas por Hugo na obras são complexas. Dom Claude Frollo é gentil, caridoso, porém, também egoísta e violento. Quasímodo, o corcunda, não é a mera personificação da beleza interior num corpo feio, pois, apresenta uma personalidade que é também sombria. Phoebus é mulherengo e superficial. Gringoire é talentoso, mas, também tolo. Enfim, se você for ler a obra esqueça o desenho animado dos estúdios Disney, Victor Hugo era adepto do realismo e, portanto, em sua obra não há final feliz, muito pelo contrário. Também, no filme que assisti por meio do You Tube constatei que a adaptação apresenta muitos reducionismos, simplificações e omissões de personagens que considero importantes, além de reinterpretações de algumas passagens da obra de Hugo, mesmo assim, vale assistir para ter uma ideia geral, porém, tendo em mente que o livro é muitíssimo melhor.

Sugestão de boa leitura:

Título: O corcunda de Notre Dame.
Autor: Victor Hugo.
Editora: Zahar, 2015, 621 p.
Preço: R$ 30,99 – R$ 54,90.