Powered By Blogger

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Infância, adolescência e juventude

Há uma discussão entre os bibliófilos (amantes ou colecionadores de livros) sobre a existência ou não de uma alta literatura. Sobre tal questão como disse, não há consenso. No entanto, há obras e autores que são expoentes da literatura mundial. Nesse quesito a literatura russa é muito rica. Há diversos autores russos entre os maiores do planeta e como não poderia ser diferente, a literatura russa ocupa um lugar de destaque no coração e nas mentes de grande parte da humanidade, obviamente, refiro-me àquelas/àqueles que fazem da leitura uma atividade imprescindível. O autor russo Lev Tolstói (1828-1910) é um dos grandes nomes da literatura mundial. Não por acaso, suas obras são presença constante nas estantes dos bibliófilos. É de Tolstói a célebre obra Guerra e Paz, a qual foi retratada em filmes e séries sempre com grande sucesso de público. Outra obra de Tolstói adaptada com sucesso para o cinema foi Anna Kariênina.

            Ontem concluí a leitura de "Infância, adolescência e juventude" de Lev Tolstói. Trata-se de uma obra que traz em único volume três livros do autor, sendo "Infância" publicado originalmente em 1852, "Adolescência" (1854) e "Juventude" de 1856. Tais publicações são difíceis de serem classificadas, mas penso que pertencem ao gênero romance autobiográfico, no qual o autor produz uma ficção baseada em fatos por ele vivenciados. Não se pode tomar tais produções como biografias e nem considerá-las puramente ficcionais. O volume é dividido em três partes (infância, adolescência e juventude) e o autor foi muito cobrado por seu editor para que fizesse novo volume sobre a velhice, no entanto, por motivos ignorados, Tolstói não deu prosseguimento ao projeto.

            Em "Infância" o escritor retrata a vida de Nikolai Irtêniev (alter ego de Lev Tostói). Tal como o autor, o menino é nascido em uma família da elite rural do Império Russo. Sendo a família abastada (proprietária de grandes fazendas e com imóveis em diferentes lugares da Rússia), o menino Nikolai têm privilégios inalcançáveis para grande parte da população russa. Nesta parte da obra, o autor relata histórias da infância, amizades e brincadeiras demonstrando grande saudosismo daquela que ele define como a melhor fase da vida de uma pessoa. O menino Nikolai (tal como Tolstói) perde a mãe muito cedo e embora não relate qual a doença que a levou à morte, fica nítida o amor que nutria pela mãe e a saudade que desta sentia. Criança, Nikolai era muito atento aos adultos e procurava imitá-los. Quando enfim se tornou adulto, gostaria de voltar a ser criança.

            Na parte referente à "Adolescência", a obra prossegue exatamente do ponto em que terminou em "Infância", dando a impressão de ter sido escrita em contínuo, porém as datas das publicações desmentem tal fato. Com a morte da mãe, a família passa a residir na casa da avó materna que não se conforma com a morte da filha. A avó faz alterações na educação dos netos, substituindo o preceptor (tutor ou professor encarregado da educação e/ou instrução de uma criança ou de um jovem na casa deste). Nikolai não gosta da troca do preceptor e passa a odiar o substituto. Nikolai como todo adolescente pensa que as pessoas (inclusive da família) não gostam dele e, somada à sua baixa auto-estima, há ainda o fato de seu irmão mais velho sobressair-se nos exames escolares. Nikolai aparenta (pela descrição feita pelo autor) possuir depressão, pois quando o tempo não está bom fica melancólico. O menino se interessa por conversas mais adultas e pensa que mudar o mundo não é difícil, basta ter vontade para que a sociedade seja consertada. Ao final dessa parte a avó também falece.

            Em "Juventude", Nikolai (Tolstói) tenta entrar para a Universidade e a prova de admissão é oral sobre um tema sorteado na hora e sobre o qual terá que apresentar perante uma banca de professores. Nikolai consegue entrar com méritos para a Universidade. Nesta parte da obra, a vida universitária, as amizades e as farras dos colegas são relatadas. Nikolai não é muito popular, mas, tenta se inserir no círculo de amigos, embora não frequente muito as festas regadas a álcool. Alguns de seus colegas passam a se envolver com mulheres, porém,  Nikolai, também não leva muita sorte no amor e algumas de suas paixões juvenis são frustradas. O jovem possui muitas amarras (sociais e religiosas) e preocupa-se muito em fazer o que é certo e estar à altura de sua posição social. Sua preocupação com a auto-imagem é grande. Buscando se relacionar melhor com as mulheres aprende a tocar piano, embora não seja bom nisso e nem mesmo aprecie tanto assim, mas quer impressioná-las. Nessa fase da vida, Nikolai fala sobre as obras literárias que lê e relata a sua vida universitária, na qual tal como o autor não era dedicado. Ao fazer sua primeira prova sobre Cálculo Diferencial e Integral (disciplina que desperta ódio ou paixão, jamais indiferença para o pessoal da área de Ciências Exatas) leva bomba. Psicologicamente abalado e com sua imagem arranhada, seu pai lhe sugere fazer nova tentativa em outra instituição. A personagem do pai de Nikolai (alter ego de Lev Tolstói) é ficcional, pois o escritor perdeu a mãe e também o pai muito cedo, dessa forma a passagem em que este tendo ficado viúvo, resolve se casar com uma jovem que não é bem recebida pelos irmãos não corresponde à história da família. Na fase de juventude, Nikolai demonstra ser uma pessoa narcisista e pouco afeita à amizades com pessoas que não estejam no mínimo em igualdade quanto à sua condição social. Paro aqui. Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Infância, adolescência e juventude.

Autor: Liev Tolstói.

Editora: L&PM, 2013, 400 pág.

 

A morte e a morte de Quincas Berro D'Água

 

Jorge Amado (1912-2001) nascido Jorge Leal Amado de Faria é o segundo escritor brasileiro de maior número de vendas de livros sendo superado apenas por Paulo Coelho. Jorge Amado é o autor mais adaptado do cinema, do teatro e da televisão brasileira. Sua obra é formada por 49 livros, os quais foram publicados em 80 países e traduzidos para 49 idiomas. Ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais e foi eleito em 1961 para a Academia Brasileira de Letras. Jorge formou-se em Direito, porém, jamais exerceu a advocacia. Tendo estudado na década de 1930 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tomou conhecimento dos ideais do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual se filiou, tendo sido eleito deputado federal em 1946. Sua atuação como parlamentar esteve entre outras ações pautadas na defesa da garantia da liberdade religiosa para os cidadãos. Ao se postar ideologicamente à esquerda tanto em suas obras como na política foi obrigado a viver exilado na Argentina, no Uruguai, em Paris e em Praga no período em que Vargas esteve no poder. Jorge Amado era vigiado tanto pela CIA quanto pelos serviços de inteligência da ex-União Soviética. Ao tomar conhecimento das atrocidades praticadas por Stalin na União Soviética, as quais foram reveladas pelo Secretário Geral do PCUS Nikita Krushev, desligou-se do Partido Comunista Brasileiro. A obra de Jorge Amado é essencialmente dedicada às raízes nacionais e suas máculas. Sendo assim, nela estão presentes os problemas nacionais e as injustiças sociais, mas, também o folclore, a política, as crenças, as tradições e a sensualidade do povo brasileiro. Dentre os grandes sucessos adaptados para a telinha e para a telona estão Dona Flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tieta do Agreste, Gabriela, cravo e canela e Tereza Batista cansada de guerra. Jorge Amado era muito estimado pelo povo baiano, especialmente as pessoas adeptas do sincretismo religioso que tão bem caracteriza a cidade de Salvador. Muito bem relacionado, teve a amizade de grandes nomes da literatura nacional como Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato e Gilberto Freyre. Também trocou correspondências com Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marquez e José Saramago.¹

            Na novela aqui resenhada, Joaquim Soares da Cunha é um cidadão respeitável, servidor público dedicado e  honrado marido e pai cuja família goza de prestígio junto a tradicional sociedade de Salvador. Joaquim vive uma vida pacata, porém, não é feliz da porta para dentro de casa, afinal é ali que a vida real acontece. A esposa de Joaquim é mais rígida que qualquer chefe que ele teve no funcionalismo público. Sua filha é uma cópia de sua esposa no temperamento. Quando completou cinquenta e cinco anos, Joaquim se aposentou e decidido a viver melhor o resto de sua vida, abandonou a esposa e a casa, largou as amizades que mantinha com as pessoas de sua classe social e passou a viver na rua, frequentando prostíbulos e bares nos quais bebia muito. Em certa ocasião, Quincas (como lhe chamavam) se encontrava num bar e serviu-se do líquido que havia em uma garrafa transparente e ao sorver o primeiro gole, cuspiu e gritou: é água! A partir desse momento foi apelidado de Quincas Berro D'Água. Quincas tinha nos vagabundos, nas prostitutas, nos jogadores de baralho, nos moradores de rua, seus amigos da nova vida, afinal, tivera uma morte social (primeira morte) quando abandonou a família e as amizades que mantinha na tradicional sociedade de Salvador. Em sua nova vida, Quincas não tinha preocupações quanto a comportar-se adequadamente para manter a reputação sua e/ou de sua família. A família é que se preocupava, pois Quincas que tantas vezes frequentara a coluna social dos jornais, agora neles aparecia cada vez que se metia em confusão e era preso, sendo que a família era obrigada a fazer esforços para retirá-lo da cadeia. A preocupação da ex-esposa e da filha (que se casara) era com os vexames que Quincas causava ao bom nome da família perante a sociedade. De nada adiantava, aconselhar Quincas, ele xingava todo mundo e voltava para a vida boêmia. Considerava seu genro um bestalhão (mandado pela jararaca da sua filha), como ele um dia fora por sua mulher, mas, ele tivera coragem de se libertar, seu genro não.

            A vida desregrada de Quincas ia bem, ou pelo menos, como ele desejava, até que ele morre (segunda morte). Seus amigos de bebedeira, de jogatina bem como as prostitutas ficam tristes com sua morte e tentam lhe dar o velório que (Quincas que tanto amava a vida) gostaria de ter, porém, sua família busca o corpo e deseja dar a ele um velório digno da classe social a que a família pertencia, enaltecer as boas qualidades de Joaquim Soares da Cunha e com isso apagar do imaginário social a má imagem do boêmio e vagabundo que ele se tornara. A morte de Joaquim é de certa forma um alívio para a família, afinal, virada essa página, não haveriam mais vexames a manchar a reputação da família perante a sociedade. O imbróglio é que a família conservadora e os amigos da vida desregrada não concordam com o formato do velório que o morto merece e gostaria de ter e, passam a disputá-lo. Salvar a reputação ou fazer uma despedida de arromba desse mundo? É a questão!  Para evitar spoiler, paro aqui. Fica a dica!

Referência:

1. Wikipédia.

Sugestão de boa leitura:

Título: A morte e a morte de Quincas Berro D'Água.

Autor: Jorge Amado.

Editora/Ano: Companhia das Letras, 1ª edição,  2008, 120 p.


terça-feira, 18 de outubro de 2022

Odorico na cabeça

 

Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) foi romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador (BA) e faleceu em São Paulo. Dias Gomes sempre demonstrou talento para escrever peças de teatro, sendo que com apenas quinze anos escreveu sua primeira peça. Em 1939, ganhou o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro com a peça “Comédia dos moralistas”. Em 1943, ingressou no curso de Direito na Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, porém abandonou o curso no 3º ano. Em 1950, casou-se com Janete Emmer (mais tarde conhecida como Janete Clair, famosa escritora de novelas da Rede Globo) com quem teve cinco filhos. Em 1983 ficou viúvo, e mais tarde casou-se com Maria Bernadete com quem teve mais duas filhas. Dentre as peças que escreveu, “O pagador de promessas” foi traduzido para mais de uma dúzia de idiomas, dando ao autor projeção internacional. A peça foi encenada em todo o mundo. A adaptação da peça para o cinema lhe rendeu (dentre vários outros prêmios), a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1962. Ao fazer uma visita à União Soviética em 1953, Dias Gomes foi demitido da Rádio Clube e seu nome foi incluído na “lista negra”. Seus textos tinham que ser negociados com a TV Tupi em nome de colegas. O autor teve várias de suas obras censuradas pela ditadura militar (1964-1985). Em 1964, foi demitido da Rádio Nacional por conta do conteúdo de sua obra. A partir de então, participou de manifestações contra a censura e em defesa da liberdade de expressão. Em 1980, com a decretação da Lei da Anistia, foi reintegrado ao quadro da Rádio Nacional e, sua peça Roque Santeiro, após dez anos de proibição pela censura, foi liberada e adaptada para a televisão pela Rede Globo e, exibida com grande sucesso junto ao público. Dias Gomes é ainda hoje, um dos autores brasileiros mais premiados por sua atuação no rádio e por sua obra no teatro, cinema e televisão. Em 11 de abril de 1991, Dias Gomes foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. ¹

            Tão logo soube da republicação do livro "Odorico na cabeça" tratei de adquiri-lo e ao tê-lo em mãos iniciei sua leitura, não o deixando na fila de espera. No livro, o universo das personagens de Sucupira (que embora escrito há tanto tempo) não perde sua atualidade, tamanho os descalabros que constatamos na realidade política e social brasileira. Ao ler a obra, temos a impressão que Dias Gomes escreveu determinadas personagens inspirado em personalidades da política e da sociedade brasileira atual, mesmo sabendo que suas fontes de inspirações eram personalidades e a sociedade de sua época de vivência. Isso nos leva a constatar que o tempo passa, porém, a hipocrisia, o falso moralismo, a malandragem e a corrupção permanecem e, não faltam personalidades cujo perfil se encaixa nas personagens de Sucupira. O Bem-Amado levado ao ar pela TV Globo obteve estrondoso sucesso e ainda hoje, muita gente lembra com saudade de suas personagens e tramas. Não falta quem diga que as produções televisivas atuais não conservam a mesma qualidade de tempos passados.

            O livro "Odorico na cabeça" traz os seguintes contos: O Chafarótico; Só cai quem monta; A Guerra das Malvadas; Um analista em Sucupira; Um jegue no Vaticano; O Finado que o vento levou e, Sucupira vai às urnas.  Em O Chafarótico, o conto trata de um chafariz restaurado em que D. Pedro I e uma de suas amantes teriam parado para beber água e cujas mulheres que dessa água passaram a beber começaram a libertar suas fantasias sexuais para o escândalo da sociedade e a indignação dos maridos traídos; Em "Só cai quem monta", Odorico cai do cavalo em sua fazenda, quando deveria estar dando expediente na prefeitura, mas preferiu estar em companhia de uma bela mulher do Rio de Janeiro a qual reivindica constantemente seus préstimos amorosos; Em A Guerra das Malvadas" Dias Gomes faz uma sátira à Guerra das Malvinas e a intenção das autoridades cuja impopularidade constatada nas pesquisas as levou a unir o povo em torno de uma causa (que se demonstrou perdida) com a real intenção de se manter no poder; No conto "Um analista em Sucupira", as pessoas de Sucupira procuram o profissional com a intenção de superar traumas e bloqueios psicológicos, o que acaba por mudar a forma de agir dos mesmos para a indignação da conservadora sociedade sucupirana que reage contra a presença do analista na cidade; O conto  "Um jegue no Vaticano" trata da promessa de uma personagem de presentear o Papa com o seu jegue de estimação em troca da recuperação de uma estátua de São Pedro que fora roubada da Igreja. A personagem não desiste de cumprir a sua promessa mesmo ante os religiosos que afirmam as dificuldades para enviar o jegue para Roma e que dadas as dificuldades, o cumprimento não é necessário e que, o que vale é a intenção; Em "O Finado que o vento levou" Odorico entusiasma-se pela possibilidade de, enfim inaugurar o cemitério que construiu e, que por ironia do destino, ninguém mais morre na cidade desde que ele ficou pronto (conseguirá?). Em Sucupira vai às Urnas, Odorico compra uma estação de rádio e monta um jornal dotado de uma moderna gráfica para fazer às calúnias e difamações da imprensa "marronzista" e "comunista" com seus jornalistas "subversivos" e "esquerdistas" (na obra quem faz oposição a Odorico é sempre por ele considerado comunista e esquerdista). Com ela pretende publicar a verdade, mas não a verdade dos opositores e sim a única verdade, a verdade dele.

            O leitor que teve a oportunidade de assistir "O Bem-Amado" ao ler a obra em questão sente saudades da produção televisiva cuja personagem de Odorico foi encarnada pelo genial Paulo Gracindo (1911-1995) e o ex-cangaceiro Zeca Diabo por Lima Duarte. Gostei de todos os contos, porém, "A Guerra das Malvadas" e "Sucupira vai às Urnas" estão acima da média dos contos do autor, Lembrando que em se tratando de Dias Gomes, a média é sempre muito alta! Fica a dica"  

1. Fonte: Disponível em:  http://www.academia.org.br/academicos/dias-gomes/biografia - acesso em 14 de Outubro de 2022.

Sugestão de boa leitura:

Título: Odorico na cabeça.

Autor: Dias Gomes.

Editora: Bertrand Brasil, 2022, 2ª edição, 153 p.


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Deus vê a verdade, mas custa a revelar (com spoiler)


 O conto "Deus vê a verdade, mas custa a revelar" aqui resenhado faz parte do livro "Senhor e servo e outras histórias" de Liev Tolstói (1828-1910). Com o presente artigo completo a resenha de tal obra, uma vez que já resenhei e publiquei neste espaço os contos "Senhor e servo" e "O prisioneiro do Cáucaso". Devo dizer que este é o conto que menos gostei no livro, nem por isso considero ser de menor qualidade. Talvez seja o fato de que a injustiça permeia a obra do início ao fim. Isso em nada desabona o conto, tendo em vista que a injustiça e a tristeza permeiam/permearam vidas que em vão sonham/sonharam dias melhores ao longo de toda a sua existência. No conto, o jovem e belo mercador Aksionov resolve viajar para fazer negócios numa feira que ocorria na cidade de Níjni. Sua jovem esposa lhe pede para que não viaje, pois tivera um pesadelo no qual ele lhe aparecia com os cabelos grisalhos. Aksionov ri e fala que ela é medrosa e que nada lhe acontecerá, pois quando com ela se casou, abandonara a bebida e as confusões da solteirice. Durante a viagem, ele encontra um mercador conhecido e seguem juntos e ao cair da noite se hospedam numa estalagem. Os companheiros ficam em quartos contíguos, no entanto, Aksionov que sempre dorme pouco, tomado pela ansiedade, resolve sair mais cedo para acelerar a viagem. E no final do dia, já instalado em outro local, enquanto tocava violão e cantava, vê chegar uma tróika (trio) formado por dois policiais e um funcionário que lhe questiona sobre sua identidade, origem e caminho percorrido. Aksionov se irrita com os questionamentos e diz não ser criminoso para ser interrogado. É informado do assassinato de seu companheiro de viagem na estalagem e, seus pertences passam por uma revista, sendo que em sua bolsa encontram uma faca suja de sangue. Aksionov fica pálido, gagueja e jura não ter matado o seu amigo. Aksionov é preso e seus pertences lhe são tomados.

            A polícia vai à Vladimir (cidade de residência de Aksionov) e questiona várias pessoas sobre ele e, ouve de todos que é uma pessoa honesta e boa, mas que na juventude bebia muito e costumava arranjar confusões. Iván Dimitríevitch (Aksionov) vai a julgamento pelo roubo de vinte mil rublos e assassinato e é condenado ao chicoteamento e ao desterro na Sibéria onde passaria o resto dos seus dias prestando serviços forçados. Sua esposa e seus filhos (crianças) vêm lhe ver e o encontram com roupa de prisioneiro, abatido e com vários fios de cabelos grisalhos. Aksionov pede à esposa que recorra ao Tzar, ela afirma que fez isso, mas, que a carta não chegou até ele. Sua esposa deixa transparecer que duvida da palavra do marido quando este afirma não ter matado o mercador. Aksionov, após recuperar-se das chibatadas é enviado à Sibéria. Ao adentrar a penitenciária de serviços forçados passou a rezar para Deus para que a verdade fosse revelada e ele fosse libertado. Não conseguia conceber que Deus permitisse que um inocente fosse castigado por um crime que não cometeu. Seus cabelos tornaram-se grisalhos, sua postura tornou-se curva, seu olhar, triste, não conseguia mais sorrir, tornara-se calado. Quando lhe perguntavam porque estava ali, dizia que devia ser para pagar seus pecados. Não contava mais o que lhe ocorrera, afinal quase ninguém acreditava que ele era inocente.

            Ia sempre às missas na penitenciária e fazia parte do coral, ainda conservava sua bela e afinada voz. Sempre que havia uma confusão entre os presos era chamado para decidir quem estava com a razão e aconselhar os envolvidos. Os demais presos gostavam dele e o chamavam de vovô (estava preso há vinte e seis anos e aparentava ter mais idade do que tinha). Também o diretor e os guardas da penitenciária gostavam dele por seu bom comportamento. Nesse tempo em que esteve preso jamais recebeu qualquer carta ou notícias de sua família. Sempre que chegavam novos prisioneiros, os demais se reuniam em redor destes, para saber quem eram, de onde vinham e por que foram condenados. Em certa ocasião, chegou um preso de nome Macar Semionóvitch vindo da cidade de Vladimir e Aksionov lhe pergunta se conhece a família de um mercador chamado Iván Dimitríevitch, este lhe afirma que o mercador fora preso há muito tempo, e que sua esposa já havia falecido, mas que seus filhos eram mercadores ricos. Macar conta que considerava sua prisão injusta, mas, que deveria ter vindo para a Sibéria há muito tempo, pois matou um homem, mas a polícia não descobriu e prendeu o homem errado, então ele não tinha culpa se a polícia não fora capaz de o achar. Macar conta a Aksionov que pretendia roubar e matar também aquele homem, mas, que com a chegada de alguém precisou fugir e escondeu a faca nos pertences dele (Aksionov). Aksionov ouve e tomado pela raiva, passa duas semanas sem dormir,  rezando o tempo todo. Em certo dia, flagra Macar abrindo um túnel para fugir e, Macar o avisa que deixa ele fugir junto, mas que se contar o matará. Aksionov diz a Macar que este o matou há vinte e seis anos. Diz também que não tem porque fugir, afinal não tem para onde ir, sua esposa está morta e seus filhos não se lembram dele. Diz ainda que vai pensar se contará ou não. A polícia descobre o buraco e questiona os detentos, porém ninguém fala. Os policiais vão até Aksionov (sabendo ser ele uma pessoa correta) e lhe perguntam, mas ele responde: Não vi e não sei. O assassino implora por seu perdão e Aksionov lhe diz: Deus vai perdoar você, talvez eu seja cem vezes pior do que você, por isto estou aqui. Aksionov passa a viver seus dias em extrema paz. Macar (arrependido) contraria Aksionov e confessa o crime aos policiais. Quando enfim chega a ordem judicial para a soltura de Aksionov, encontram-no morto.

Sugestão de boa leitura:

Título: Senhor e servo e outras histórias.

Autor: Liev Tolstói.

Editora: L&PM, 2009, 128 pág.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Do amor e outros demônios

Antes de ser escritor, Gabriel García Márquez (1927-2014) foi jornalista. E na presente obra ele conta que em um dia qualquer do ano de 1949, sem ter uma pauta especial lhe foi incumbida a tarefa de ir até o histórico prédio do Convento de Santa Clara, o qual iria ser demolido para a construção de um hotel cinco estrelas em atendimento à demanda do pujante turismo da colombiana e caribenha cidade de Cartagena das Índias. Naquele momento estavam sendo abertas as criptas onde estavam enterradas freiras da Congregação das Irmãs Clarissas e também pessoas da nobreza colonial, período em que a cidade era a mais povoada do Vice-Reinado de Nova Granada cujo território deu origem à Colômbia, Panamá, Equador e Venezuela. Muitos cadáveres haviam sido ali depositados há mais de duzentos anos e suas ossadas estavam sendo entregues às famílias sempre que estas as reclamavam. Outras (não reclamadas) seriam transferidas para o cemitério. Enquanto estava lá, chamou a atenção de Gabriel García Márquez quando da abertura de uma cripta cuja  placa  registrava ser da Marquesa Sierva Maria de Todos los Àngeles, na qual estava a ossada de uma criança com uma longa e vasta cabeleira cor de cobre, a qual mediu vinte e dois metros e onze centímetros. Ante seu espanto, o pedreiro disse ao jovem jornalista que isso era plenamente normal pois, o cabelo continua crescendo após a morte. Márquez lembrou que sua avó lhe contara sobre a lenda de uma marquesinha cujo cabelo se arrastava no chão tal qual uma cauda de vestido de noiva a quem vários milagres foram atribuídos. A longa cabeleira nunca cortada desde sua infância era parte de uma promessa cujo término seria com seu casamento.

            O jovem jornalista voltou ao jornal e fez a matéria sobre a demolição do convento, porém, nunca esqueceu a história. Em 1994, já consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982, retornou ao tema publicando a presente obra. Os pais de Sierva Maria de Todos los Ángeles se casaram sem que entre eles houvesse amor, quando nasceu (século XVIII) foi criada por uma escrava de nome Dominga del Adviento. O Marquês e sua esposa foram totalmente negligentes com a criança que somente se sentia à vontade quando estava em companhia das escravas. Com elas aprendeu a cultura e algumas línguas africanas sobretudo a língua yorubá que falava fluentemente. A Cartagena da Índias na qual viveu a pequena marquesa era também a mais rica cidade do Vice-Reino de Nova Granada. Tinha um milionário comércio de escravos. Era de seu porto que navios carregados de ouro e prata partiam para a Espanha e era por ele que chegavam mercadorias e pessoas da metrópole. Em certa oportunidade, a marquesinha com doze anos de idade foi ao porto junto com uma das escravas para adquirir alimentos e acabou sendo mordida no tornozelo por um cão portador de raiva.

            Quando seu pai tomou conhecimento do fato ocorrido, levou-a de volta para a Casa Grande, mas, ela não se habituou e voltou a dormir com as escravas na senzala. O pai tentou se redimir de sua negligência buscando a melhor medicina da época (a qual não era grande coisa), afinal, a doença era à época incurável, A menina ante os maus tratos (procedimentos médicos rudimentares da época) que recebia dos médicos começou a reagir de forma hostil e, tendo em vista que a doença era incurável, o Marquês foi procurado por religiosos que lhe orientaram a interná-la no Convento das Freiras Clarissas para que ao menos sua alma fosse salva. O conhecimento acerca da doença era quase nenhum e, os religiosos viam na loucura que se instalava nos doentes, a possessão de demônios sobre seus corpos e que atormentavam suas almas. A abadessa do Convento não gostou de receber a menina e a queria longe dali no menor tempo possível, para tal, carregava de tinta as atas que fazia sobre ela atribuindo-lhe a culpa por chuvas fortes, revoadas de pássaros, eclipse e tremor de terra. Um jovem padre de nome Cayetano Delaura foi designado para fazer seu exorcismo porém, sonhou com ela antes de a conhecer e ao conhecê-la esta lhe contou o mesmo sonho. O jovem padre que sonhava ser bibliotecário do Vaticano era muito culto, possuía e lia livros proibidos pela Santa Inquisição. O padre teve pena da marquesinha e ao visitá-la frequentemente, acabou por se apaixonar por ela. Tendo tomado conhecimento de uma passagem secreta entre o hospital e o convento, começou a fazer visitas noturnas à Sierva Maria que também por ele se apaixonou. Cayetano tenta mostrar aos demais religiosos que não acredita que ela esteja possuída por demônios e afirma: "Ás vezes atribuímos ao demônio coisas que não entendemos. Sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus". Os exorcismos começaram por intermédio de outro sacerdote e a menina aterrorizada se tornou ainda mais hostil reforçando a ideia de estar possuída por demônios. Sierva Maria propõe ao padre Cayetano Delaura fugirem e este se recusa, pois quer encontrar um meio legal para livrá-la desse sofrimento e conseguir dispensa de seu ofício para com ela viver. Paro aqui para não dar spoiler! Fica a dica!

 

Sugestão de boa leitura:

Título: Do amor e outros demônios.

Autor: Gabriel García Márquez.

Editora: Record, 2020, 192 pág.