Powered By Blogger

domingo, 23 de janeiro de 2022

O harém de Kadafi

 

 


       Muammar Muhammad Abu Minyar al-Gaddafi (1942-2011) foi o presidente da Líbia desde o ano de 1969 (quando na condição de militar liderou o golpe que depôs o monarca Idris I) até sua morte (execução) em 2011. Kadafi (na pronúncia em português) governou a Líbia com mãos de ferro apoiadas em seu serviço secreto que o abastecia com todas as informações quanto a seus opositores que eram estimulados a permanecer em silêncio ou silenciados. Kadafi era tido como excêntrico e chamava a atenção sua guarda presidencial feminina que o acompanhava nas viagens que fazia ao exterior. Também fazia parte do espetáculo, preterir os hotéis luxuosos e  instalar tendas para nelas receber as autoridades durante os dias em que ficava em território estrangeiro. Kadafi, porém, não era apenas excêntrico, era controverso, polêmico e, suas atitudes pouco democráticas fizeram com que multiplicasse o número de inimizades dentro e fora do país.

            Kadafi nascido em Sirte (cidade em que foi capturado e morto), filho de beduínos pobres cujo pai esforçou-se em colocá-lo na escola por considerar ter grande inteligência, acabou por aderir à carreira militar onde rapidamente galgou postos de comando. E foi na condição de líder militar que chegou ao poder líbio ao destituir a monarquia. Buscou sempre a união árabe (no que fracassou) e, mais tarde a união africana (também sem sucesso). No governo, publicou o Livro Verde no qual propunha uma alternativa ao socialismo real e ao capitalismo. Era um grande marqueteiro, fazia discursos inflamados e chamava a atenção mundial para temas com os quais podia capitalizar sua imagem, porém, poucas eram as ocasiões que seu discurso estava afinado com sua prática. Narcisista, estimulava a adoração à sua imagem como uma espécie de "pai de todos".

            O Governo de Kadafi caiu em meio à Primavera Árabe, ocasião em que a população saiu às ruas incitada e organizada por lideranças que  por meio das redes sociais tinham como objetivo exigir democracia, liberdade e respeito aos direitos civis. Os protestos, tal como peças de dominó enfileiradas foram se sucedendo no norte da África desde a Tunísia e atingindo países como a o Egito e a Líbia, porém, à exceção destes países citados, noutros não logrou êxito. Há estudos que demonstram que tais protestos tiveram auxílio estrangeiro (Soft Power ou Guerra Híbrida) com a intenção de desestabilizar governos refratários aos interesses das grandes potências. Tanto é verdade, que a virada na Guerra Civil Líbia se deu com a entrada das potências (Estados Unidos, Inglaterra, França e Itália) que à frente da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) bombardearam as forças leais a Kadafi mudando o curso dos acontecimentos.

            As potências obviamente afirmaram que com o auxílio pretendiam retirar uma ditadura dando condições à instalação da democracia naquele país. No entanto, sabemos que estas parecem acreditar que onde há petróleo, a democracia deve receber mais estímulos. De forma alguma, criticamos as razões que levaram o povo líbio a querer mudanças na política do país, entretanto, não somos, ingênuos de acreditar que as potências o fizeram de forma desinteressada. O tempo até aqui decorrido mostrou que a revolução frustrou o sonho de dias melhores. O caos domina o país, traficantes de drogas controlam cidades, guerrilheiros tribais disputam o poder e controlam áreas do território, a economia colapsou,a pobreza aumentou enormemente.

            A jornalista francesa Annick Cojean publicou em 2012 o livro "O harém de Kadafi". Nele a autora conta a história de Soraya, uma jovem e bela estudante de 15 anos, que fora escolhida pela direção da escola em que estudava para entregar flores ao então presidente líbio em visita à cidade. Muammar recebeu as flores e afagou o cabelo de Soraya, era a senha, a líder da guarda presidencial feminina viria mais tarde buscá-la, tinha sido escolhida para o harém. Na obra, Cojean publica os relatos de Soraya, que por cinco anos teria sido mantida como escrava sexual do ditador (um grande consumidor de viagra). No palácio havia uma área em que ficavam alojadas as moças que podiam ser chamadas a qualquer momento do dia ou da noite para atender aos desejos sexuais dele. Kadafi que em seus discursos pregava os bons costumes (segundo a religião islâmica) e exaltava e valorizava o papel das mulheres na sociedade, as tratava como objetos sexuais, inclusive obrigando-as a  consumir drogas. Cojean viajou para a Líbia (após a morte de Kadafi) para buscar provas dos fatos relatados por Soraya e descobriu que o assunto virou tabu naquele país, ninguém quer falar. Parte da população, porque admirava o ex-presidente e ele está morto e, os opositores porque afirmam que isso prejudica a imagem do país no exterior. No entanto, encontrou provas e locais tais como descritos por Soraya.

Sugestão de boa leitura:

Título: O harém de Kadafi.

Autor: Annick Cojean.

Editora: Verus, 2012, 4ª edição, 238 pág.

 

sábado, 15 de janeiro de 2022

Torto arado

 


            O livro Torto arado do escritor Itamar Vieira Junior (ganhador em 2018 do Prêmio Leya e, em 2020 dos Prêmios Jabuti e Oceanos) foi uma grata surpresa no ano de sua publicação (2019). Seu sucesso foi tanto que suas vendas o colocam na lista dos mais vendidos ainda hoje. Não são poucos os críticos literários que afirmaram que vimos nascer um clássico da literatura nacional. Um clássico (como bem sabe o leitor) é uma obra que sobrevive ao tempo e continua a ser lida pelas novas gerações dada a importância do seu conteúdo (que não se esgota).

            A obra é dividida em três partes: Fio de Corte, Torto Arado e Rio de Sangue. Os acontecimentos da trama são apresentados por três diferentes narradoras. É um livro de conteúdo profundo, nem por isso pesado. A leitura é prazerosa e discorre sobre temas brasileiros, alguns "invisibilizados", mas que constituem grandes cicatrizes no tecido social. Temas como a disputa pela terra, o processo escravagista, a desigualdade social, a concentração da terra, o analfabetismo, a fome, a pobreza e, os aspectos positivos como a grande riqueza cultural dessa nação miscigenada a partir das diferentes matrizes (africana, indígena e europeia). O livro pertence ao gênero do realismo mágico tão popularizado na obra de Gabriel García Márquez. Isso se evidencia quando o autor discorre sobre as entidades da religiosidade africana e indígena unidas aos santos da religião católica, configurando aquilo que todos sabemos, o sincretismo religioso, que mais do que uma adaptação, foi uma forma de resistência à opressão reinante.

            A trama tem como personagens principais as irmãs Bibiana e Belonísia que sofrerão um trauma que mudará para sempre suas vidas. Personagens de destaque também são Zeca Chapéu Grande, o líder religioso (uma espécie de Xamã) que se comunica com as entidades. Severo, por sua vez é o líder sindical dos camponeses quilombolas, cujo trabalho consiste no esclarecimento e na organização da comunidade quilombola na busca pela demarcação de sua terra, o que contraria os interesses do latifúndio. A obra trata ainda da escravidão ainda hoje existente em nosso país, na forma de condições degradantes do trabalho, ou seja, análogas a escravidão. Notícias como estas, não raramente aparecem nos noticiários e geralmente envolvem latifúndios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

            O leitor deve ter percebido que estou me esforçando em não dar spoilers, faço isso porque considero que deve ler esta obra e, não quero estragar o prazer que terá. Sabemos que ninguém lê o mesmo livro. Cada leitor encontrará nuances diferentes, porém, uma coisa é certa, a obra permite uma ampla discussão sobre o nosso país, pois, apresenta o Brasil profundo, não ficando nas camadas superficiais de uma máscara da pátria e de seu povo, que já não convencem ninguém, aqui ou no exterior.

            Recomendo fortemente a leitura! Oportunidade única de ler um clássico ainda quente, pois, recém saído do forno!

           

Sugestão de boa leitura:

Título: Torto arado.

Autor: Itamar Vieira Junior.

Editora: Todavia, 2019, 1ª edição, 264 pág.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A importância da leitura e da análise do que se lê (2021)

 

        O ano de 2021 em pouco diferiu de 2020 passando a impressão de ser sua continuidade. A pandemia parece já durar uma década, tamanha as limitações impostas à normalidade das relações sociais. A realidade socioeconômica observada diariamente nas ruas e os noticiários sobre o péssimo desempenho da economia nacional também não ajudam nenhum pouco. O ano de 2021, tal como o ano anterior, foi extremamente desgastante do ponto de vista físico, mental e emocional. Sendo a leitura algo que me proporciona relaxamento e prazer, foi na leitura que consegui um pouco de paz ante o desastroso cenário socioeconômico que se descortina para a maioria da população brasileira.

            Ao contrário do que planejava, não escolhi de forma criteriosa minhas leituras tomando como base os parâmetros levantados pela análise das leituras do ano anterior. Tendo em vista que a vida é curta, optei por ler obras de autores famosos com os quais não havia tido nenhum contato. Embora não houvesse a intenção deliberada, li setenta e dois livros, cinco a mais do que em 2020. Afinal, mais importante que a quantidade de livros que se lê é a qualidade da literatura lida.

            A iniciativa deste artigo não é a de se gabar, mas, a de inspirar. Algumas pessoas já me disseram que se iniciaram no hábito da leitura (ou a ele regressaram) ao ler as resenhas de livros que publico. Digo que também fui influenciado em tal sentido por mestres(as) que tive em toda a minha vida estudantil. Também foi assim quanto ao ato de escrever. A vida é uma troca entre gerações, apenas repasso as boas energias que recebi. No ano que passou em relação a autoria/continentes, assim foram as minhas leituras: Oceania: 1,4%; Ásia: 12,5 %; África: 2,8%; Europa: 33,3%; América: 50%. Das leituras de obras de autores americanos, a América Latina parece com 73% e a América Anglo-Saxônica com 27%. Quanto a leitura de obras latino-americanas por país: Brasil: 92% (33,3% da leitura global); Colômbia: 8%. Quanto a autoria/gênero das leituras realizadas: 77,8% sexo masculino e 22,2% sexo feminino. Outubro foi o mês que li mais (10 livros) e o mês que li menos, tal como em 2020, foi Maio (1 livro) e isso se explica pela sobrecarga do trabalho no Magistério nesta época. A partir desta análise, desejo ler em 2022 mais obras de autores latino-americanos (além do Brasil), africanos, asiáticos e, também mais obras de mulheres. Também decidi desencalhar os maiores calhamaços da estante, portanto, isso implicará em uma menor quantidade de livros a serem lidos ao longo de  2022.

             As dez melhores leituras foram: 1. Bolívar: O libertador da América (Marie Arana); 2. Torto Arado (Itamar Vieira Júnior); 3. Memorial de Maria Moura (Rachel de Queiroz); 4. Olga (Fernando Morais); 5. Flores para Algernon (Daniel Keyes); 6. Silêncio (Shusaku Endo); 7. A morte de Olivier Bécaille (Émille Zola); 8. O amante de Lady Chaterlley (D. H. Lawrence); 9. A escrava Isaura (Bernardo Guimarães); 10. Todo dia (David Levithan). Como sempre faço, para evitar injustiças atribuo menções honrosas para as seguintes obras: A Consolação da Filosofia (Boécio); 24 horas da vida de uma mulher e outras novelas (Stefan Zweig); Eu acuso! A verdade em marcha (Émille Zolla); Relato de um náufrago (Gabriel García Márquez); Notas do subsolo (Fiódor Dostoiévski); Depois de Auschwitz (Eva Schloss); O curioso caso de Benjamin Button (F. Scott Fitzgerald); Os dez dias que abalaram o mundo (John Reed); Uma esperança mais forte que o mar (Melissa Fleming); Cabul no inverno: vida sem paz no Afeganistão (Ann Jones); O livreiro de Cabul (Asne Seierstad); O harém de Kadafi (Annick Cojean).

            Em se tratando de boas leituras, foi um ótimo ano. Agora é escolher as leituras deste ano e torcer/orar pelo fim da pandemia!

P.S. Segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro (2021) a média de leitura do brasileiro é de 2,43 livros por ano. Que tal participar na melhora desse índice? O país e, principalmente VOCÊ, só tem a ganhar!

domingo, 2 de janeiro de 2022

Flores para Algernon

 

 

O escritor estadunidense Daniel Keyes (1927-2014) publicou oito livros sendo "Flores para Algernon" sua obra-prima. Keyes antes de alcançar sucesso com seus livros foi marinheiro e professor do ensino médio e universitário (universidade de Ohio), onde foi homenageado como Professor Emérito em 2000. O autor ganhou os prêmios Hugo e Nebula pelo conjunto de sua obra. Também foi escolhido como Autor Emérito da Science Fiction e Fantasy Writers of America em 2000. O livro Flores para Algernon foi publicado na forma de conto em 1959 sendo que somente em 1966 ganhou o formato de romance. Tal obra alcançou grande popularidade, sendo considerada um clássico da ficção científica. Algernon é um rato de laboratório que sofreu um procedimento cirúrgico no cérebro realizado por cientistas com o objetivo de aumentar seu nível de inteligência. Após a cirurgia, o rato em questão, demonstrou ter um desempenho muito superior aos ratos comuns. A fase seguinte da pesquisa científica tinha como objetivo repetir a experiência com um ser humano. O ser humano escolhido foi Charlie Gordon, um homem de 32 anos com deficiência intelectual grave. Sua escolha se deu por meio da indicação que sua professora da escola especializada em adultos com deficiência intelectual fez para os cientistas que a procuraram.

            Charlie tinha grandes limitações quanto à percepção da realidade, à aprendizagem e também quanto à socialização. Na família conviveu com a rejeição de seus pais, na escola era alvo de bullying, quando se tornou adulto a situação não melhorou, pois, seus colegas de trabalho também assim agiam. Na sociedade sofria o preconceito por ser uma pessoa com severo déficit cognitivo. Devido à sua dificuldade de interpretação da realidade, Charlie achava que as pessoas riam do que ele falava porque ele era legal e falava coisas engraçadas, na verdade, riam dele, de suas limitações. A família autoriza e ele é operado. A cirurgia no cérebro é um sucesso. Orientado pelos cientistas desde as semanas que antecederam a cirurgia, Charlie precisava escrever diariamente o "relatório de progresso" no qual deveria escrever suas observações sobre o dia, o que estava pensando, etc. O livro traz os relatórios que se dão entre março e novembro de um determinado ano, neles é visível a progressiva evolução de Charlie na escrita quanto à ortografia e a concatenação das ideias.

            Com o passar das semanas, Charlie que disputava um teste com o rato Algernon e sempre perdia, passa a vencê-lo. Em seguida ele começa a superar intelectualmente seus colegas de trabalho na padaria, seus professores e, até mesmo os cientistas. As recordações de momentos passados e agora postos sob análise o leva a descobrir que não riam com ele na escola ou no trabalho, mas, dele. Passa também a compreender a realidade e a sociedade e, conforme fica mais esclarecido, vai se tornando mais triste, amargurado. Outro fato é que as pessoas se assustam com sua inexplicável evolução e dele se afastam, começam a ver nele uma ameaça. Ele se vê sem amigos, geralmente pessoas muito inteligentes não são as mais populares, inclusive por resistência das pessoas comuns, afinal não consideram legal conviver com uma pessoa que fala, escreve e faz coisas melhores do que elas.

            Flores para Algernon é uma obra de referência no ensino médio dos Estados Unidos da América dada a dimensão da discussão que sobre ela é possível fazer. Na obra, conforme se torna mais inteligente, Charlie passa a apreciar mais a ciência e a se afastar de sua religiosidade. Charlie é levado para conferências científicas onde o pesquisador-chefe se vangloria de sua pesquisa quando Charlie pega o microfone e o repreende ao ser tratado como se fosse um animal de laboratório, afirmando que agora ou antes da cirurgia, ele tinha o status de ser humano e dessa forma se deveria referir a ele. O cientista obviamente ficou muito irritado e, quando Charlie passa a fazer relatórios de progresso que passam a se constituir em verdadeiros tratados científicos, ele perde a simpatia dos pesquisadores com seus egos feridos. Charlie observa que o rato Algernon começa a ter dificuldades em realizar tarefas para as quais fora treinado e após alguns dias morre. Charlie começa a pesquisar o que deu errado na pesquisa científica, pois receia que ele deva ter o mesmo fim. Encerro por aqui! Fica a dica, porém com a ressalva de que se trata de um livro que não é longo, mas possui "gatilhos", portanto não indico para pessoas com histórico de  traumas psicológicos. Digo que a obra me afetou fortemente, então considere sua história de vida antes de ler!

Sugestão de boa leitura:

Título: Flores para Algernon.

Autor: Daniel Keyes.

Editora: Aleph, 2018, 1ª edição, 288 pág.