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segunda-feira, 23 de maio de 2022

Cachorro Velho

 

É conhecida a frase de que nos pequenos frascos se encontram os grandes perfumes. Em se tratando de literatura, obviamente isso não faz sentido. Há obras maravilhosas da literatura mundial que constituem calhamaços que desencorajam as pessoas menos disciplinadas na leitura. Há porém, livros como "Cachorro Velho" de Teresa Cárdenas (1970) que nos impressionam fortemente mesmo com um número pequeno de páginas. Teresa Cárdenas é uma escritora, roteirista, atriz, bailarina e ativista social cubana. A escritora é uma das mais destacadas figuras da nova geração de escritores cubanos, sendo que recebeu o Prêmio David (1997), o Prêmio Nacional da Crítica Literária (2000), o Prêmio Casa de las Américas (2005), dentre outros. É ainda uma bailarina renomada e exerce também o ofício de contadora de histórias. A escritora se lamenta da pequena participação de autores negros na literatura mundial, creditando isso à falta de oportunidades concedidas às/aos mesmas(os). A Editora Pallas se insere nesse espaço com a missão de publicar no Brasil autores negros das mais diferentes nacionalidades. Algo muito importante num país que foi um dos últimos a abandonar o sistema escravista. Recentemente, tivemos a passagem do 13 de Maio (abolição da escravatura) e, 134 anos depois, os descendentes das pessoas escravizadas têm muito pouco o que  comemorar, pois, o racismo estrutural ainda é uma das características principais da nação brasileira.

            Cachorro Velho é título e também a personagem principal da obra de Teresa Cárdenas. Trata-se de um negro que nasceu em uma fazenda cubana (engenho de açúcar) e dela jamais saiu, portanto, não conhece os arredores desta. Sua mãe era africana e dela foi separado ainda muito pequeno. Conta-se que recebera o nome Eusébio dado pelo padre católico que o batizou e um nome africano dado por sua mãe, nome este que ninguém na fazenda lembra, pois, sua mãe fora vendida. Ainda bebê, buscava encontrar sua mãe pelo olfato, portanto, cheirava as mulheres que o pegavam no colo, fato pelo qual foi apelidado de Cachorro Velho pelo Senhor de Escravos que via nele atitude semelhante ao dos referidos animais. Cachorro Velho tem 70 anos e sente que está perdendo sua vitalidade e teme ser "descartado" pelo patrão, caso este faça a fria conta dos benefícios e prejuízos de sua manutenção. A idade levou Cachorro Velho a ser designado para a função de porteiro da fazenda.

            A sua atual pouca utilidade, faz com que o patrão já não adquira roupas novas para ele que anda esfarrapado pela fazenda. Seus amigos é que lhe arrumam algumas surradas vestes para cobrir o velho e maltratado corpo. Com mais tempo disponível, ele rememora sua infância e a difícil vida de escravo. Não acredita no divino e/ou no sobrenatural, embora isso seja algo muito cultuado pelos demais negros. Acredita que o inferno é a vida na escravidão e que o paraíso é ser livre, como o senhor de escravos. Ele conta que todos os escravos não podem fitar os olhos do senhor, precisam manter a cabeça baixa perante ele, falar com ele somente se preciso e, com voz suave e de cabeça baixa. Demonstra resignação ao acreditar que o senhor é dono do destino deles e a ditar se eles podem se casar ou continuar vivendo. Ele remói suas feridas psicológicas e não alimenta nenhuma esperança de ter um resto de vida melhor. Nunca conheceu o amor, não se considera normal, pois, se relacionou com várias mulheres, mas, nunca teve tal sentimento com nenhuma delas.

            O mais próximo que teve do amor, foi quando jovem, era encarregado de levar os cavalos do senhor até o rio para dar água e banho neles, quando numa destas ocasiões, viu uma linda moça negra nadando nua no rio, que lhe sorriu e chamou-o para a água, ele se atirou na água, porém, ela fugiu nadando numa velocidade que ele não era capaz de acompanhar, gritou-lhe perguntando seu nome e ela respondeu Assunción. Jamais a viu novamente, embora jamais tenha desistido de procurá-la. Beira, a escrava que produz remédios caseiros a partir de ervas medicinais é a sua melhor amiga. Ele se pergunta, se quando era jovem, caso tivesse se casado com Beira sua vida teria sido diferente, mas, não o fez e nem mesmo sabe se ela queria isso. Beira é tida pelos negros da fazenda como feiticeira, de ter poderes sobrenaturais. Na fazenda, os negros escravizados buscam preservar sua cultura e fazem suas festas (quando o senhor permite), ocasião em que dançam, bebem e comem seus pratos típicos. A chegada de uma jovem escrava fugida (Aísa) de um engenho vizinho e que é escondida por Beira causa uma mudança no rumo da vida das personagens principais da trama. Encerro aqui para não estragar o prazer da leitura desta obra pelo leitor. Esse breve relato representa pouco do que a obra proporciona. Indico fortemente sua leitura.

Sugestão de boa leitura:

Título: Cachorro velho.

Autor: Teresa Cárdenas.

Editora: Pallas, 2010, 142 pág.

 


sábado, 7 de maio de 2022

O Cortiço

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) foi um romancista, contista, cronista, diplomata, caricaturista, jornalista, desenhista e pintor. O autor de O Mulato (1881) e Casa de Pensão (1884) tem no livro O Cortiço (1890) sua obra-prima. A obra de Aluísio Azevedo pertence ao gênero naturalista (uma radicalização do realismo) que baseia-se na observação fiel da realidade e no empirismo. Azevedo não é somente um ficcionista, é um cientista social, pois sua literatura tem como base personagens tido como comuns entre aqueles que povoavam os inúmeros cortiços da cidade do Rio de Janeiro naquele distante século XIX. Aluísio acreditava apenas no que era cientificamente comprovável e, adepto do determinismo, acreditava que  o homem sofria as influências do meio em que vive. O determinismo postulava que fatores como a raça, o meio social e o momento histórico determinavam as atitudes e o caráter das pessoas. Hoje sabemos que o homem sofre as influências do meio, mas, que não é um ser passivo, pois,  pode transformá-lo de acordo com suas necessidades (possibilismo).

            Na obra, o protagonismo cabe ao cortiço que se constituía numa sucessão de pequenas casas ou quartos num mesmo terreno para a moradia de pessoas pobres. O autor apresenta como uma das personagens principais o capitalista João Romão, um homem sem escrúpulos no que tange a exploração econômica de seus subordinados ou com quem realiza negociatas. Bertoleza é uma escrava de ganho e, como tal, repassa dinheiro para o seu senhor e poupa parte dele para a compra de sua alforria. O senhor de escravos (proprietário de Bertoleza) morre e João Romão até então amigo de Bertoleza, passa a viver com esta e a cuidar de seu dinheiro. Cobrado por Bertoleza, João Romão falsifica um documento de alforria para enganá-la e fica com seu dinheiro, o qual utiliza para construir o cortiço. Miranda é dono de um sobrado vizinho ao cortiço de propriedade de João Romão. Miranda casou-se por interesse, sua esposa (Dona Estela) é infiel, porém, Miranda a suporta, pois, seu objetivo de vida era ser rico. Miranda compra um título de barão junto à Coroa brasileira.

            João Romão compra uma pedreira junto ao cortiço e contrata o português Jerônimo, que, juntamente com sua esposa Piedade (também portuguesa) muda-se para o cortiço. No cortiço, Jerônimo atrai os olhares da fogosa Rita Baiana, que se recusa a casar (com homem nenhum) pelo desejo de continuar a ser uma mulher livre. Jerônimo se apaixona por Rita Baiana, o que desagrada Firmo, o homem com quem Rita Baiana tem um caso de longa data. Jerônimo que era um homem sério e dedicado à família (esposa e filha) e também muito trabalhador, torna-se preguiçoso, festeiro e adúltero. Sua relação com Rita Baiana acaba ocasionando uma trágica briga com o capoeirista Firmo. João Romão se incomoda com o baronato de Miranda, o qual, por sua vez, em crise financeira promove o arranjo do casamento de sua filha Zulmira com o endinheirado João Romão. Para casar-se com Zulmira, João Romão precisa livrar-se da escrava Bertoleza e suborna o delegado de polícia para que procure o herdeiro de seu ex-proprietário para que este a retome e a conduza de volta para a senzala.

            O cortiço, no qual a trama acontece, é um microcosmos da sociedade da época vivida por Aluísio Azevedo (o Rio de Janeiro do século XIX). Os acontecimentos são ficticiamente ambientados no bairro de Botafogo. No cortiço, homossexuais, lésbicas, mascates, escravos, ex-escravos, mulheres abandonadas pelos maridos, mães solteiras, curandeiros, criminosos, alcoólatras e gigolôs se fazem presentes. Na rotina diária do cortiço,  homens e mulheres exercem sua sexualidade livre, porém, não como na atualidade se faz, ao erguer uma bandeira e contrariar regras impostas pela sociedade ou pela igreja. O autor mostra as personagens numa condição animalizada e, desta forma, movidos pelos seus instintos agem naturalmente. No cortiço, há várias personagens que demonstram possuir desvios das condições mentais consideradas normais. Os traumas de tais personagens via de regra se referem às duras condições de sobrevivência que a miséria lhes impôs, como exemplo, a mulher que abandonada pelo marido se entrega ao alcoolismo e que sofre abusos sexuais quando se encontra nessa condição e até uma personagem masculina que vive na extrema miséria, mas, tem uma fortuna guardada em seu quarto no cortiço. João Romão, o inescrupuloso proprietário do cortiço, aparece como benfeitor (abolicionista) perante  a sociedade, mas, é um sujeito disposto a tudo para defender os seus interesses. A tragédia marca o fim da obra.

            O cortiço caiu na prova de literatura do vestibular que fiz naqueles distantes anos 1990 (Só havia lido um resumo da obra em preparação). Fato que aumentou a curiosidade acerca desse livro. Li somente agora, devia tê-lo feito antes!

P.S. Há também o filme (que assisti), porém, a adaptação não é tão boa quanto o livro!

Sugestão de boa leitura:

Título: O cortiço.

Autor: Aluísio Azevedo.

Editora: Panda Books, 2017, 1ª edição, 304 pág.

 

domingo, 1 de maio de 2022

O Crepúsculo da Democracia

 

Anne Elizabeth Applebaum (1964) é uma escritora e jornalista estadunidense que desenvolveu sua carreira escrevendo artigos para alguns dos jornais mais importantes do mundo sobre o comunismo, a transição do socialismo para o capitalismo levado a cabo pelos países da Europa Oriental. Anne reside na Polônia, país no qual contraiu matrimônio com o político polonês Radoslaw Sikorski com o qual tem dois filhos. Applebaum foi ganhadora do Prêmio Pulitzer de não-ficção geral em 2004. Embora radicada na Polônia, Anne viaja muito pela Europa e não raras vezes se desloca para o seu país natal, os Estados Unidos da América. Entre seus livros de maior destaque encontra-se "Entre o Oriente e o Ocidente" e "Gulag: uma história". Applebaum é fluente em inglês, francês, polonês e russo.

            O título da obra aqui resenhada é auto-explicativo. Em "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas", Applebaum conta sobre o estarrecimento que teve quando observou que do seu círculo próximo de amizades inclusive pessoas que recebia na sua casa para banquetes, após algum tempo, já não a cumprimentavam devido a divergência políticas. Anne se define como uma pessoa cuja ideologia a coloca na centro-direita ou mesmo na direita do espectro político. Ocorre que muitas das suas antigas amizades foram inviabilizadas. Muitas dessas pessoas afirmam que Anne é uma esquerdista, embora a jornalista afirme que ela se mantém fiel a ideologia que sempre teve e que a coloca no canto oposto da esquerda política. Antenada, Applebaum acompanha a trajetória de seus amigos e amigas e observa atônita que muitas dessas pessoas defendem posições antidemocráticas e praticam discursos de ódio.

            Na obra, Anne discorre sobre a polarização política que ocorre em vários países cuja rachadura do tecido social só faz aumentar. Comenta sobre as bolhas que se formam nas redes sociais onde quem pensa diferente é excluído ou se auto-exclui. Se informando por meio de redes sociais e sites nem sempre confiáveis quanto à qualidade da informação e, sem disposição para fazer a checagem de tais notícias, as pessoas acreditam com uma fé inquebrantável em fake news produzidas ao gosto do consumidor. A autora discorre também sobre o fascínio que o discurso autoritário desperta em pessoas que acreditam que as coisas podem ser resolvidas facilmente com o uso da força. O discurso de ódio é dirigido contra tudo aquilo que é diferente, seja o imigrante, a população LGBTQIA+, os esquerdistas, etc.

            Applebaum registra que muitas vezes tais discursos de ódio versam sobre problemas inexistente naquele país, porém, políticos utilizam tais falas para capitalizar apoios. Ela cita a Hungria que sequer tem problema considerável quanto a entrada de imigrantes, mas, cujos discursos políticos e noticiários debatem o tema o tempo todo. Anne se diz assustada com os discursos de ódio evocando a xenofobia, o racismo, etc. proferidos por pessoas com as quais conviveu. Tais discursos versam sobre como o passado era glorioso, de que nele havia dignidade, heroísmo, etc. E denotam grande preconceito contra judeus, muçulmanos, esquerdistas, etc. A autora também afirma que a violência, seja ela, verbal ou física contra funcionários públicos, jornalistas e juízes só aumenta.

            A autora faz uma constatação importante, ela sugere que a chamada velha mídia (a mídia tradicional) perdeu a exclusividade de pautar os temas para a discussão da sociedade. Hoje quem faz isso são as redes sociais que escancararam a complexidade do mundo. As redes sociais, têm um aspecto democrático, ao possibilitar que mais parcelas da sociedade possam se ver representadas nas discussões, porém, a tendência de formação de bolhas de pensamento único tendem a manter apenas aqueles que compartilhas de tal ideologia. Sem o confronto com  o discurso contraditório, as pessoas tomam como verdade, interpretações dos fatos e não os fatos em si e, dessa forma se tornam agressivos contra quem discorda da verdade, que é a única possível, a sua verdade. Os fatos já não importam. Como as redes sociais são várias e, inúmeros são os canais e sites existentes nas redes sociais, as pessoas não se entendem ao dialogar sobre determinados fatos, pois, cada um teve acesso a interpretações dos fatos e não aos fatos em si.

            A autora lembra dos fundadores dos Estados Unidos e como eles se preocuparam com o risco que políticos populistas e autoritários poderiam causar à democracia estadunidense colocando contrapesos para evitar o risco da aventura autoritária. Anne considera que não há garantias suficientes colocadas em qualquer constituição, em qualquer país do mundo, mas, que a resistência aos projetos autoritários de poder representados por políticos (por ela citados) em vários países, precisa ser sempre vigilante e atuante. Um desafio enorme tendo em vista a cacofonia que se tornou atualmente o debate sobre a política, a cultura, enfim, a sociedade.

Sugestão de boa leitura:

Título: O crepúsculo da democracia.

Autor: Anne Applebaum.

Editora: Record, 2021, 1ª ed., 167 pág.