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sábado, 26 de setembro de 2020

A necessária consciência de classe

             Enquanto refletia sobre que tema abordar neste espaço, ouvi minha esposa ao telefone e o conteúdo da fala me chamou a atenção, aproximei-me e escutei em silêncio. Concluída a ligação a inquiri para entender o contexto. Ela falava com um operador de telemarketing de e-commerce que a aconselhava a abrir uma reclamação pela demora da entrega dos produtos pela estatal Correios. Ela se recusou a fazer o que lhe fora sugerido e disse que os funcionários dos Correios tinham direito a fazer greve e que ela os apoiava em suas reivindicações. Disse ainda que não via problema na demora dos produtos, afinal era por uma boa causa. Digo a você que fiquei com muito orgulho dela. Muito li que os opostos se atraem, em nosso caso, foi justamente o inverso. A convergência na forma de pensar e de ideais nos aproximaram e nos mantêm unidos, afinal, inteligência e bom senso são fundamentais e nisso ela me supera.

            Ela é da área de exatas, suas leituras visam a história da ciência,  da física, da matemática, etc., ou seja, não tem o hábito de ler autores marxistas, mesmo assim, lembrei o quanto sua atitude parecia atender ao clamado de Karl Marx (1818-1883) em "O Manifesto Comunista" quando dizia: "Trabalhadores do mundo, uni-vos" ou ainda, os ensinamentos de Antonio Gramsci (1891-1937) quando em suas obras professorava sobre a necessidade de formar o intelectual orgânico na figura do trabalhador capaz de ser dirigente e, de compreender e ensinar que independentemente da função exercida (gari, professor ou médico) a classe trabalhadora é una e nela seus integrantes devem ser solidários e cooperativos. O que muito atrapalha para tal é a falta de consciência de classe de grande parcela da classe trabalhadora, problema muito antigo, afinal, no período escravocrata haviam negros no papel de feitores de escravos e de capitães do mato. Havia ainda quem fosse contra o fim da escravidão, apesar de não possuir terras e ser pobre. Enfim, consciência de classe é como disse, um problema crônico do país, que apesar de ser um dos mais desiguais do mundo elege periodicamente a bancada do Congresso Nacional cuja maioria é formada por latifundiários e milionários que garantem com seu trabalho no Poder Legislativo que nada mude. A escravidão, legalmente, não mais existe, porém, persiste no ranço de uma "elite do atraso" como assim a denominou o sociólogo Jessé Souza.

            Em nossa sociedade "do atraso" abundam fontes de "ruídos" travestidos de informação e fake news se proliferam como pragas e, em meio a esse caos midiático, a forte alienação e a débil capacidade de interpretação de texto constituem praticamente nós górdios na formação intelectual do brasileiro médio. Seria a falta de consciência de classe de grande parcela da classe trabalhadora um mal irremediável? Penso que não, porém, assim como para curar uma pessoa do uso de substâncias tóxicas é necessária sua forte disposição em enfrentar o problema, não se adquire consciência de classe sem reflexão crítica seja sobre a leitura que se faz ou a própria vivência. Ler e viver, em si, não tornam as pessoas críticas, mas, refletir profundamente sobre o que se lê e o que se vive, sim. O atual sistema educacional sofre consequências diretas e indiretas de problemas estruturais de nossa sociedade e vive uma crise permanente. Darcy Ribeiro (1922-1997) já alertava que "a crise na educação nunca acaba porque não se trata de uma crise, mas, de um projeto." Há no sistema educacional brasileiro uma doutrinação reversa e irrefletida, a qual, ampliada pela grande mídia, normaliza a injustiça social por meio do pseudo-discurso da meritocracia eternizando e aprofundando a divisão da sociedade em Casa Grande (privilegiados) e senzala (trabalhadores espoliados). Os poderosos odeiam  livros e professores porque ensinam a pensar. Na sociedade há uma escolha que todo indivíduo precisa fazer: pensar ou ser pensado. Muitos não pensam. Quem pensa, incomoda. Penso que, como articulista e professor, me cabe entregar às pessoas com quem me relaciono a chave que abre as algemas do pensar, há quem a utilize para se libertar. Há quem a jogue fora, praguejando. Encerro com uma frase emblemática da ativista estadunidense Harriet Thubman (1822-1913) "libertei mil escravos. Poderia ter libertado outros mil, se eles soubessem que eram escravos"!

sábado, 19 de setembro de 2020

O último dia de um condenado

 


 

           


Victor Hugo (1802-1885) foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos. Em sua grandiosa obra, destacam-se os livros: Os miseráveis (1862) e O corcunda de Notre Dame (1831) publicado originalmente com o título Notre Dame – Paris, 1482. O autor é conhecido por seus calhamaços (obras com grande número de páginas), mas, este não é o caso do livro "O último dia de um condenado" publicado em 1829. Na obra, o autor apresenta para a reflexão do leitor a pena capital a partir do ponto de vista de um condenado à espera de sua execução. Embora o leitor possivelmente tenha opinião formada sobre a validade ou não da pena de morte, a leitura desse livro é fundamental, pois, o próprio Victor Hugo, após ver publicado seu livro criticou personalidades da alta sociedade francesa que debatiam-no, porém, sem jamais o terem lido, afinal, ter opinião formada sobre a pena de morte, não as fazia críticas competentes da premissa contida na obra, dada a ignorância acerca desta.

            O escritor francês fazia parte de um seleto grupo de intelectuais engajados na construção de uma sociedade menos injusta e mais solidária e, obviamente era opositor fervoroso da pena de morte, algo que inúmeras vezes presenciou na França de sua época. Embora esta fosse aplicada a ricos e pobres, a classe social era levada em conta e, se pobre, humilhações eram acrescentadas ao espetáculo horrendo. O médico francês Joseph-Ignace Guillotin (1738-1804) considerava que a pena capital deveria ser igual para todos os criminosos, independente da classe social e, deveria ser menos dolorosa para o condenado. Ele criou uma máquina que acabou por levar seu sobrenome e, como também era parlamentar apresentou a guilhotina ao governo francês e, por meio dela morreram desde mendigos a reis e rainhas.

            O livro é contado a partir do ponto de vista do narrador, um condenado cujo nome e crime não é revelado ao leitor. Ao ler, supõe-se que ele tenha assassinado alguém e que o autor tem a intenção de levar o leitor a refletir sobre a pena capital e não sobre um determinado crime em si. Mas, algumas pistas são dadas, o condenado tem educação refinada, algo naquele tempo inacessível à pessoas pobres. A escrita profundamente realista levanta a dúvida se o escritor usou sua imaginação ou baseou-se em relatos escritos por algum condenado ao qual teve acesso. O autor também coloca no livro relatos de jornais sobre crimes hediondos levando o leitor a pensar nas vítimas e em suas famílias. O condenado parece não se arrepender do crime, mas, tem profunda esperança em ser absolvido, porém, suas esperanças esvanecem ante as tentativas frustradas de seu advogado de lhe conseguir a postergação do julgamento, a comutação da pena e o perdão. A condenação ante o Tribunal do Júri, os jurados (cuja fisionomia observou atentamente na esperança de compaixão) o mandaram para a morte, embora ele pense não merecer tal destino. Na prisão, embora tente, não consegue parar de pensar na morte, a não ser quando consegue dormir.

            O condenado que preferia morrer a ser obrigado a trabalhos forçados, começa a mudar de opinião conforme se aproxima o dia e o horário de sua execução (conforme lhe fora informado). Ele pensa na mãe idosa e doente que certamente morrerá de desgosto quando de sua execução. Pensa na esposa também doente e na filha pequena cujos amiguinhos terão pai e ela não, também pensa em como elas sobreviverão, pois a ele cabia sustentá-las. A obra procura mostrar a tortura psicológica pela qual passa o condenado que possui ciência antecipada da data de execução (embora seja um criminoso, não deixa com isso de ser humano). O leitor, indiretamente é levado a pensar nos países que adotaram/adotam a pena capital e nas várias vezes em que  inocentes foram condenados, sendo na maioria dos casos, pobres e minorias e, de que não há reparação possível à morte de uma pessoa inocente. E o que pensar quanto aos países que aplicam a pena de morte sem nunca terem dado condições de vida digna à grande parcela destas? Enfim, na obra, o leitor sabe de antemão que o condenado será executado e, esta tem como ponto principal a narrativa detalhada e chocante do último dia de vida deste, sobre o qual nada direi, para não dar spoiler. Fica a dica!

 

Sugestão de boa leitura:

Título: O último dia de um condenado.

Autor: Victor Hugo.

Editora: Estação Liberdade, 2002, 192 p.

Preço: R$36,00.

sábado, 12 de setembro de 2020

Piloto de guerra

         

Antoine Jean-Batiste Marie Roger Foscolombe (1900-1944), Conde de Saint-Exupéry, popularmente conhecido como Antoine de Saint-Exupéry, autor da mundialmente célebre obra "O pequeno príncipe", o terceiro livro mais vendido no mundo, atrás apenas da Bíblia Sagrada e do Al Corão. Saint-Exupéry foi escritor, ilustrador e piloto civil e militar francês. Desde jovem foi contaminado pelo fascínio às máquinas voadoras. Tendo sido reprovado em sua tentativa de ingressar no corpo de pilotos militares de seu país não desiste e aos 21 anos de idade já possuía o brevê de piloto civil e, no ano seguinte volta à carga e consegue também o brevê de piloto militar no posto de subtenente da reserva. Saint-Exupéry fez parte de um grupo de arrojados pilotos que por meio do correio aéreo trabalharam interligando regiões isoladas do planeta com pouca ou nenhuma infra-estrutura de apoio tendo sobrevivido a vários acidentes, porém, com sequelas.

            A eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o avassalador avanço das tropas alemãs no palco europeu, levaram o já famoso piloto-escritor aos Estados Unidos da América na tentativa de convencer suas lideranças a reunirem forças, sem lograr êxito (os EUA titubearam muito a entrar no que diziam ser "a guerra dos europeus"). Com o avanço alemão sobre a França encurralando suas forças de resistência, Saint-Exupéry apresenta-se para voar caças contra os invasores, porém, devido às suas sequelas e a idade avançada (para pilotagem de caça) é descartado. Não desiste, e, ante sua insistência, autoridades militares lhe oferecem posições de comando afirmando que podem formar bons pilotos às centenas, porém, precisam de bons comandantes, Saint-Exupéry recusa a oferta, quer voar, e, após a análise de sua situação médica e de um rápido treinamento habilita-se a voar o P-38 Lightning, tornando-se o mais velho dentre os pilotos de sua divisão.

            A obra trata de um tema pesado (a guerra), no entanto, sua escrita a suaviza, porém, sem jamais a romantizar, afinal, o autor considerava a guerra como sendo uma doença da humanidade. Descreve algumas situações rotineiras de pilotos militares em seu ofício de guerra (a observação das posições inimigas, o receio do fogo anti-aéreo e do encontro com caças inimigos). Registra a angústia da espera ante o atraso da volta de uma missão e, o tempo, após o qual, as esperanças esvaneciam e a tristeza muda caía sobre todos, especialmente sobre o comandante que escalara os pilotos (desaparecidos/mortos) e lhes dera pessoalmente as instruções. Também registra o sofrimento das mulheres, crianças e velhos que não se envolviam diretamente na guerra, mas, que a sentiam profundamente com o medo, a fome e a exaustão emocional ante a incapacidade do Estado (ameaçado em sua existência) em conceder as condições para a sobrevivência digna da população. Na volta de suas missões, Saint-Exupéry refletia e escrevia sobre a vida e a morte, os motivos que tornam a vida digna de se viver e os motivos que justificam colocar-se sob o risco da morte, os quais são exatamente aqueles pelos quais se quer viver.

            Em 1944, na parte final da guerra, Saint-Exupéry que já havia perdido vários de seus amigos pilotos, não retorna após uma missão. As buscas na rota estabelecida não encontraram o local da queda. Em 1994, foi encontrado um bracelete com seu nome na praia e uma busca realizada na região encontrou os destroços do avião. Um piloto alemão declarou ter abatido um  avião P-38 Lightning francês naquele local e lamentou que o destino lhe colocasse frente ao famoso escritor naquelas condições. As críticas que teceu à forma como o esforço de resistência era conduzido rendeu a inimizade do General Charles De Gaulle que jamais reconheceu a importância do aviador, menos ainda do escritor Saint-Exupéry. Aliás, De Gaulle, quando presidente, homenageou companheiros de Saint-Exupéry (que deram a vida pela França), mas, não a este. Na obra, o autor critica a literatura vazia de significado, afinal, bom conteúdo é essencial e demonstra sua verve humanista e espiritual. Encerro parafraseando Saint-Exupéry em "O pequeno príncipe" dizendo que o piloto-escritor "levou um pouco de nós (sociedade humana) consigo e deixou (muito) de si conosco."

Sugestão de boa leitura:

Título: Piloto de guerra.

Autor: Antoine de Saint-Exupéry.

Editora: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015, 187 p.

Preço: R$19,57.

 

domingo, 6 de setembro de 2020

Notícias de lugar nenhum

 


 

           

Nenhuma pessoa intelectualmente competente e honesta pode afirmar que a sociedade que construímos sob a égide do capitalismo é a mais próxima possível do ideal. Muito pelo contrário, o mundo em que vivemos se revela ante nossos olhos com a fome que assola quase um bilhão de pessoas (1 a cada 8). 1% da humanidade detém mais da metade da riqueza mundial e seis famílias brasileiras detém metade da riqueza nacional, pois, nosso país está na lista dos dez países de maior concentração da renda no mundo. Em pleno século da informação e da Terceira Revolução Técnico-Científica, quase um bilhão de pessoas ainda se encontram presas às algemas do analfabetismo. O capitalismo trouxe para a humanidade importantes avanços tecnológicos, porém, nem todos a ele têm acesso e muitas vezes esses avanços que deveriam servir para melhorar a vida das pessoas, jogaram importantes parcelas da população à miséria decorrente do desemprego. O avanço tecnológico tem se demonstrado, na maioria das vezes, a serviço do aumento da opulência de poucos. Neste novo mundo que aos poucos vem surgindo, a mão de obra barata e semi-escrava dos países subdesenvolvidos perde importância, pois, o robô consegue produzir a custo menor do que a mais barata mão de obra humana.

            Sempre que aqueles que se advogam defensores do capitalismo (surrealmente, muitos trabalhadores) fazem o enaltecimento das realizações e jogam na invisibilidade a fome, a concentração da renda, as várias formas de exclusão, a exploração brutal da mão de obra, a espoliação das riquezas naturais dos países subdesenvolvidos por grandes transnacionais estrangeiras amparadas no poderio bélico de grandes potências. A "mão invisível" do deus Mercado tal como preconizado pelos seguidores de Adam Smith é a mesma que opera os porta-aviões e os aviões stealth contra aqueles que se recusam a entregar seus recursos naturais a um preço que seja o mais próximo possível do custo, pois, o lucro precisa ficar no destino e não na origem. É necessário dizer que o mundo em que vivemos foi construído pelo capitalismo, é dele os ônus e os bônus (isso é fato) e, é uma atitude desonesta intelectualmente tergiversar quanto a necessidade desse debate. O ardoroso defensor do capitalismo se esconde atrás de falsos discursos meritocráticos que visam convencer a si próprio (para que sua consciência fique tranquila) da pseudo-justiça de um sistema extremamente cruel e ineficaz na construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

            Vivemos num mundo capitalista, respiramos capitalismo e este sistema socioeconômico parece impregnado no DNA de muitas pessoas. O capitalismo é concreto e qualquer proposta diferente é abstração. É difícil pensar sobre o abstrato, pois exige muita leitura e esforço intelectual. O capitalismo não é o fim da história como arvorou Francis Fukuyama. História é movimento e, a linearidade não é sua característica. O designer têxtil, poeta, romancista William Morris (1834-1896) que tinha como características de sua personalidade o apreço pela estética e pela ética lançou-se ao ativismo político (socialismo libertário) na busca de uma sociedade que fosse bela e verdadeiramente humana, algo que não via na Inglaterra enquanto império capitalista, industrial e bélico do século XIX. Morris tem na obra "Notícias de Lugar nenhum" um belo exercício de abstração sobre como seria viver numa sociedade comunista (estágio posterior ao socialismo). No livro, o narrador acorda numa Inglaterra comunista e sem entender o que aconteceu começa a percorrer o país e conversar com as pessoas que lhe explicam o seu modo de vida e organização social. O narrador apresenta-se como estrangeiro para justificar o seu desconhecimento sobre a construção do comunismo naquele país. Os moradores das comunidades (inclusive interioranas) que visita lhe explicam que foi necessária uma revolução violenta para destituir as autoridades de suas barricadas estatais e conceder ao povo o poder sobre seu próprio destino. Há uma passagem em que o escritor usa certo sarcasmo, ao afirmar que o requintado edifício do Parlamento Inglês agora era utilizado como depósito para estocar adubo (estrume). O narrador percorre o país, recebe hospedagem nas casas de locais e conversa sobre as mudanças e questiona sobre o que aconteceu com coisas e fatos de "sua época". A sociedade que visita vive de forma simples, mas, é muito feliz e nada parece lhes faltar para ter uma vida digna. Enfim, não pretendo fazer aqui uma análise da sociedade descrita no romance, pois, resultaria num artigo gigantesco. Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Notícias de lugar nenhum: Ou uma época de tranquilidade.

Autor: William Morris.

Editora: Expressão Popular, 2019, 295 p.

Preço: R$35,00.