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domingo, 25 de dezembro de 2022

Vidas à deriva


 Há uma velha máxima de que os livros são sempre melhores que suas adaptações para o cinema. Vidas à deriva cujo título original é "Adrift" (Á deriva) é mais um exemplo disso. Li o livro há algum tempo e gostei muito, porém, não o resenhei neste espaço. Com a chegada das férias e, a vontade (necessidade) de distensionar a mente, ao ver o catálogo da Netflix, lá estava o filme inspirado na tragédia vivida pela estadunidense Tami Oldham Ashcraft (autora do livro), imediatamente comecei a assisti-lo.

            A mãe de Tami lhe deu à luz com apenas quinze anos de idade, por essa razão, Tami foi criada pela avó, afinal sua mãe não tinha maturidade suficiente para a empreitada materna. Apesar disso, Tami sempre teve contato com sua mãe. Após cursar o Ensino Médio (High School) nos Estados Unidos, Tami contrariando sua mãe, resolveu não ingressar na Universidade, optando, por virar mochileira e, juntamente com uma amiga saiu à deriva, ou seja, sem rumo certo em uma kombi usada, por ela adquirida. Tami e sua amiga foram até uma praia onde acamparam. Nesta praia tomou conhecimento de uma oferta de emprego de um veleiro cujo proprietário precisava de tripulantes e não exigia experiência. Após uma conversa franca onde ela deixou claro que sua relação com ele seria apenas profissional, aceitou a função de cozinhar e fazer vigia, fez uma viagem de teste de dois dias e, feito isto, velejou com Fred (o proprietário do barco) rumo à Polinésia Francesa. Segundo a autora, Fred foi sempre um cavalheiro.

            O termo à deriva ou, nas palavras de Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar, vida leva eu" resume a vida de Tami. Sempre se inserindo em veleiros como tripulante, sem um rumo certo para ir mas, com o único objetivo de não voltar para casa, pois, embora ocasionalmente falasse com sua mãe, a relação entre elas não era muito boa.  No Taiti, Tami conhece o velejador inglês Richard e, eles se apaixonam à primeira vista. Iniciam um namoro, porém, após alguns dias Richard recebe uma tentadora proposta financeira de um casal de idosos que pretende voltar para os Estados Unidos de avião e precisa que alguém conduza o veleiro de volta. Ante a recusa de Tami, em seguir junto, Richard cogita desistir da missão, porém, em troca de duas passagens aéreas de volta para o Taiti e dinheiro suficiente para navegar com Richard durante um ano, ela acaba cedendo.

            O casal, apesar dos esforços, para fugir, acaba sofrendo a ação de um furacão de nível 4 que produz sérias avarias no veleiro, inclusive quebrando o mastro. No filme, como também no livro, há a intercalação de momentos anteriores à tragédia e aqueles em que a única preocupação era conseguir chegar a algum lugar e sobreviver. O livro traz relatos diários das atividades e pensamentos da autora determinada a não morrer por sede ou fome no gigantesco Oceano Pacífico. A aparelhagem do veleiro estava estragada, não havia como se comunicar. A parte interna do barco havia se convertido em uma piscina, Tami teve que bombear manualmente a água para fora do barco. A velejadora improvisou uma vela e, com os instrumentos de navegação rudimentares que tinha à mão, sextante e relógio, tentava chegar ao Havaí. A cada novo dia, calculava onde estava e corrigia a rota. Olhava o horizonte com binóculos e nada encontrava. Os dias iam passando (foram quase cinquenta dias à deriva). Quando, enfim, passou um navio, seus tripulantes não viram os sinais de localizador por ela disparados. O motor do veleiro (sim, veleiros transoceânicos têm motor para situações de emergência, porém, para trajetos curtos) também não funcionou.

            Tami, que era vegetariana, se viu obrigada a comer carne de peixes (crus), os quais teve que conseguir por meio de caça submarina. Isso se deu quando as provisões de enlatados (para situações de emergência) acabaram. O drama por ela vivido, no livro prende a atenção e leva o leitor a querer saber o que acontecerá a cada novo amanhecer. No filme não funcionou tão bem, pois, apesar de não ser um filme ruim, não empolga. Nas páginas finais do livro, a autora fala para uma de suas filhas uma frase emblemática: "A vida é como velejar, algumas vezes com vento a favor, noutras com vento contrário". Movido pela curiosidade, fui procurar como os barcos à vela navegam com vento contrário e aprendi que precisam ajustar as velas e fazer manobras, ora para estibordo (lado direito do rumo da embarcação), ora para bombordo (lado esquerdo). Assim é a vida, muitas vezes traçamos uma linha reta para atingir nossos objetivos, mas, os ventos contrários podem nos fazer desistir ou, usar da persistência, manobrando e mesmo que lentamente alcançar a meta! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Vidas à deriva: A história real que deu origem ao filme.

Autor: Tami Oldham Ashcraft.

Editora: Astral Cultural, 2018, 271 pág.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Riacho Doce

 

O paraibano José Lins do Rego (1901-1957) se popularizou como um romancista da decadência dos senhores de engenhos e tinha como característica escrever com grande agilidade, apesar de dizer a todos que o ato de escrever era difícil. A matéria-prima de suas obras estava nas memórias e reminiscências (vividas e internalizadas pela transmissão oral por seus predecessores) de um sistema econômico de origem patriarcal, com o trabalho semi-escravo do eito, ao lado de outro aspecto importante da vida nordestina, o cangaço e o misticismo. O conjunto de sua obra pode ser classificado em três tópicos: 1. O ciclo da cana-de-açúcar, com Menino do Engenho, Doidinho, Banguê, Usina e Fogo Morto; 2. O ciclo do cangaço, misticismo e seca, com Pedra Bonita e Cangaceiros; 3. Obras independentes com ligações nos dois ciclos: O moleque Ricardo, Pureza e Riacho Doce; e desligadas dos ciclos: Água-mãe e Eurídice. Sua carreira como literato o lançou à “imortalidade” como membro eleito da Academia Brasileira de Letras – ABL. José Lins tentou produzir obras desligadas dos temas que o popularizaram, porém, como assinalou Manuel Bandeira: “era um motor que só funcionava bem queimando bagaço de cana”.

A obra Riacho Doce (1939) é dividida em três partes. A primeira parte tem como personagem principal, Ester, a professora de Eduarda, uma melancólica adolescente sueca que alimentava sonhos de liberdade. Eduarda apelidada carinhosamente de Edna, não gostava do frio da Suécia, seu país natal. Sonhava com uma terra de clima quente e de paisagens verdejantes. A jovem não gostava da submissão a que era submetida por sua família no que concerne à educação e à religião, principalmente por parte de sua avó Elba. Edna também detestava o trabalho no sítio da família no qual vivia. A adolescente pensava que merecia algo melhor do que casar e continuar a viver cuidando de animais numa propriedade rural. Ester abre os olhos e a mente de Eduarda, para a vida e para o mundo. A menina se encanta pela professora, a quem considera a pessoa mais linda que já viu. Ester não é loira e de pele alva como todas as pessoas que Edna conhece e, se parece com uma boneca espanhola que tanto gostaria de ter, mas que pertence a uma de suas colegas de classe. A professora Ester se interessa pela adolescente no sentido de auxiliá-la a passar por tais problemas existenciais, porém, Edna vê em Ester o objeto do maior sentimento que um dia já teve. As pessoas da pequena vila não demoram a perceber que algo "estranho" permeava a relação entre as duas e reage. A professora é demitida e volta para a sua terra de origem. Edna sofre com sua ausência.

Eduarda cresce e se casa com Carlos, um jovem engenheiro do setor de petróleo que, querendo ganhar muito dinheiro e, também dar à esposa a possibilidade de morar em terras tropicais brasileiras, antigo sonho desta, resolve aceitar uma proposta de trabalho em uma perfuração de poço de petróleo em Riacho Doce (na verdade, uma praia de Maceió) no estado de Alagoas. Riacho Doce é o título da segunda parte do livro. Após semanas de travessia marítima, o casal chega à Riacho Doce e é instalado em uma grande e bela casa. Edna conta com funcionárias para os afazeres domésticos, portanto, dorme até tarde e, passeia pela praia, mergulha no mar, enquanto Carlos passa o dia fora de casa trabalhando. A sueca, chamada pelas outras mulheres de forma desdenhosa de "galega", talvez com um certo sentimento de inveja pelo fato de que a bela loira chama a atenção dos homens do local. Eduarda, no entanto, olha a todos e todas com ar de superioridade e, apesar de adorar Riacho Doce, seu clima, praia e mar, continua insatisfeita com a vida. Edna casou-se com Carlos sem amá-lo, movida unicamente pelo desejo de fugir da vida que levava no sítio de sua família. O casal não vive bem, Carlos ama Edna, porém, esta evita tanto quanto possível ter relações sexuais com ele. Ela sente nojo dele, odeia ser por ele tocada. A jovem esposa sueca passa seus dias contemplando a natureza na praia, nadando e nos momentos em que se encontra em sua casa, ouvindo e tocando instrumentos musicais.

A terceira parte do livro tem por nome "Nô", trata-se de um jovem nativo, considerado muito belo pelas mulheres, sendo que muitas perderam a cabeça por ele, no entanto, ele se relaciona com elas, sem jamais se apaixonar por nenhuma. Nô é o "sonho de consumo" de mulheres solteiras e também das casadas. O rapaz é neto de "Mãe Aninha", uma líder espiritual nativa que faz benzimentos, rezas e que atrai até mesmo uma certa antipatia dos sacerdotes religiosos pelo papel que exerce e no qual tem mais influência que estes. Mãe Aninha "fechou" o corpo de Nô contra qualquer mal, seja, disparos de arma de fogo, golpes de faca e, até mesmo, o amor por uma mulher. Nô, segundo sua avó jamais se apaixonaria, mulheres seriam apenas para sua diversão, pois, o neto jamais desviaria do caminho traçado por esta. Nô é também oprimido pelo fanatismo religioso da avó a quem é submisso e crédulo. No entanto, Edna e Nô se conhecem, e apaixonam-se à primeira vista. Tornam-se amantes e numa vila pequena,  nada passa despercebido. A "Mãe" Aninha torna a vida de ambos um inferno, mas, sempre potencializando seus ataques com seus poderes místicos (ou não) à jovem mulher sueca. O sentimento que une os dois belos jovens é uma explosão de desejo, portanto, incontrolável e isso ameaça a paz da localidade conduzida à mão firme pela conservadora e religiosa "Mãe" Aninha. Fico aqui para não dar spoiler! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Riacho Doce.

Autor: José Lins do Rego

Editora: José Olympio, 2011, 304 p.


domingo, 4 de dezembro de 2022

Do que vivem os homens?


 Costumo dizer que não tenho compromisso com o erro, dessa forma estou sempre disposto a mudar de posicionamento, caso eu obtenha novos conhecimentos teóricos ou experimentais que assim me convençam. Prova disso são essas linhas que parecem distantes, mas, são de um artigo deste ano: '[...] Não tenho a predileção pela leitura de contos, menos ainda de resenhá-los neste espaço. Gosto de obras com maior número de páginas para nelas fazer uma imersão". Tendo reservado parte de meu tempo para um novo curso de pós-graduação, optei por leituras mais leves e menos extensas, deixando de lado os calhamaços (livros com mais de quinhentas páginas). Resolvi dar oportunidade aos livros de contos, que são leituras rápidas, tendo como objetivo o relaxamento, a descontração. E eis que peguei o gosto pela leitura de contos, talvez tenha ajudado o fato de ter me debruçado sobre as produções literárias do russo Liev Tolstoi (1828-1910). Tentei também as HQ's (histórias em quadrinhos), mas não funcionou.

            Tenho o hábito de utilizar camisetas estampadas com frases literárias ou críticas de autores e obras. Uma delas dizia o seguinte: "Era tão pobre, mas tão pobre, que só tinha dinheiro". Alguns estudantes me perguntaram: "como uma pessoa pode ser pobre, se tem dinheiro?" Expliquei que uma pessoa pode ter dinheiro, mas, pode ser pobre de cultura, de educação, de honestidade, de solidariedade, de fraternidade, etc. Certa vez entabulei uma conversa com um empresário da capital do estado (Paraná), disse a ele que não tinha uma piscina em minha casa, mas, que tinha uma biblioteca (o que, em meu ver, é algo muito mais importante) e que nunca tive e não tenho ambição por dinheiro, basta-me ganhar o suficiente para ter algum conforto material, mas, não propriamente esbanjar ou viver luxuosamente. O empresário disse que eu era pobre até nos pensamentos e passou a falar sobre a piscina que tinha em sua casa e, também sobre as viagens que o dinheiro lhe proporcionava. Penso que a frase da camiseta é acertada, a pobreza não é apenas a resultante da falta de recursos financeiros, da mesma forma, a riqueza não se encontra apenas na acumulação do vil metal. Lembro que uma vez conversei com uma ex-empresária de minha cidade, a qual largou os negócios e passou a viver melhor após ter se conscientizado que caixão não tem gaveta (para levar dinheiro).

            Com tais palavras, não digo que ter dinheiro é desimportante, mas, que viver para acumulá-lo (sem viver) é escravidão e, escravos costumam ser pobres, de uma forma ou de outra. Mas, como diria Odorico Paraguaçu de "O Bem Amado" da obra de Dias Gomes (1922-1999), "Vamos botar de lado os entretantos e partir logo pros finalmentes". No conto "Do que vivem os homens?" de Liev Tolstói, o humilde sapateiro Simon, sai para fazer cobranças referentes a trabalhos prestados em seu estabelecimento e obviamente não quitados. Antes de sair, ele pega o pouco dinheiro que possui em casa, com a intenção de juntá-lo ao que arrecadar com as cobranças e, comprar peles para que sua esposa faça casacos, com os quais possam suportar melhor o duro inverno russo. Simon, não tem tido dias fáceis, com seu trabalho, tem conseguido apenas o suficiente para comprar alimentos. As roupas de frio dele e de sua esposa estão em estado deplorável. Ela vive reclamando da falta de dinheiro para fazer frente a outras necessidades. Ocorre que os devedores também estão passando por dificuldades financeiras e, Simon não consegue juntar o valor necessário. Aborrecido e humilhado pela situação de pobreza, sem coragem de voltar para a casa e dar a má notícia para a esposa. Antevendo as reclamações desta, ele entra num bar e se embriaga e, ao sair observa que volta para casa com menos dinheiro do que quando saiu. No caminho, já na madrugada, encontra um homem (quase congelado) deitado no chão e praticamente sem roupas, imediatamente, passa para ele seu casaco puído e o leva para casa, não sem imaginar as broncas da esposa, quanto ao fato de levar um estranho para dar hospedagem e alimentação num lar onde o alimento que há é pouco até para os que nele habitam. Paro aqui, para não dar spoiler! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Do que vivem os homens?

Autor: Liev Tolstói.

Editora: E-Book Kindle, 2020, 33 pág

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

O sedutor do Sertão ou o grande golpe da mulher e da malvada

Ariano Vilar Suassuna (1927-2014) foi um escritor, dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, artista plástico, professor universitário, advogado e palestrante brasileiro. Ariano é conhecido principalmente por sua obra-prima  "O Auto da Compadecida" que se constituiu em grande sucesso no cinema e na TV. Sua obra aborda o folclore nordestino acerca de fatos históricos daquela região e do país. O coroamento da obra de Suassuna se deu com sua eleição para a Academia Brasileira de Letras em 1989, para a Academia Pernambucana de Letras (1993) e Academia Paraibana de Letras (2000). O livro aqui resenhado é o primeiro contato deste escriba com a obra impressa do escritor paraibano por nascimento e pernambucano por opção, do qual apenas tinha assistido o filme sobre "O Auto da Compadecida", o qual contava com as inesquecíveis personagens de João Grilo e Chicó "trazidos à luz" respectivamente por Matheus Nachtergaele e por Selton Mello. Também havia assistido entrevistas de Ariano Suassuna, as quais traziam o seu humor impagável, dentre as quais uma dada ao saudoso apresentador Jô Soares no talk show por ele apresentado. Nesta ocasião ele levou a platéia e o apresentador às lágrimas ao tecer comentários sobre seu pavor em voar ante as recomendações agourentas acerca dos procedimentos a serem tomados quanto a possibilidade de um desastre aéreo.

            A obra "O sedutor do Sertão" foi escrita em menos de trinta dias e tinha como objetivo virar filme, plano que foi frustrado e, por isso foi engavetada e publicada somente em 2020, ou seja, seis anos após a morte do autor. A obra de Ariano Suassuna além do característico bom humor tem sempre um tom de crítica social. O período ambientado na trama é o início da década de 1930, a qual foi marcada por vários movimentos revolucionários no país e, em especial, na Paraíba, ocasião em que lideranças do município de Princesa Isabel quiseram fazer dele um novo estado, independente portanto, da Paraíba. O líder de tal movimento era o Coronel José Pereira que, apesar de fazer parte do mesmo partido político do presidente (governador) João Pessoa era inimigo deste. O pai de Ariano Suassuna (João Suassuna), antecedeu João Pessoa no governo da Paraíba e ao se retirar do cargo, voltou a morar em sua fazenda em Taperoá (sertão da Paraíba). João Suassuna que continuou na política, porém como deputado federal, foi acusado injustamente da morte de João Pessoa. Seu pai foi absolvido no tribunal, porém, foi assassinado logo em seguida. Há rumores (nunca confirmados) de que parentes de João Pessoa estariam envolvidos em tal morte. A mãe de Ariano, em dificuldades financeiras, vendeu a fazenda e a família se mudou para a capital de Pernambuco (Recife). É nesta cidade que Ariano completa seus estudos e estréia na literatura.

            Na trama de "O sedutor do Sertão" a personagem principal é Malaquias Pavão que tem em Miguel Biôco, seu fiel companheiro nas andanças pelo interior paraibano. Malaquias sempre que fiscalizado pelas autoridades, afirma ganhar a vida vendendo garrafadas (remédios feitos a partir de raízes e folhas de plantas) e impressos de contos e poemas. Malaquias, utiliza qualquer planta para fazer as ditas garrafadas, o segredo de seu sucesso é o discurso e encenações (exploração da boa fé das pessoas) onde seu ajudante Miguel Biôco que, como exemplo, aparece andando com muletas ante o ajuntamento de pessoas, toma uma garrafada "milagrosa" e fica "curado", abandonando as muletas. Malaquias ganha muito dinheiro vendendo cachaça sem selo, isso longe da polícia, pois era considerado um delito grave. Malaquias faz várias trapaças, logra pessoas e lhes toma aquilo que lhe é de interesse, seja dinheiro ou cavalos. Malaquias tem duas paixões, o cavalo Rei de Ouro, considerado o melhor do Sertão e Silviana, a bela esposa de Sinfrônio Perigo, de quem é sócio no contrabando de cachaça do Brejo que vende no Sertão. Ambos tentam passar a perna um no outro, Sinfrônio quer ficar com todo o dinheiro do negócio e também com o cavalo de  Malaquias, que por sua vez, quer para si, a mulher de Sinfrônio e, obviamente, ficar com todo o dinheiro. As personagens percorrem o interior da Paraíba e encontram grupos armados, ora leais ao Presidente João Pessoa, ora leais ao Coronel José Pereira, sendo obrigados a fingir que são apoiadores, ora de um, ora de outro, devido ao risco de morte em afirmar ser opositor. O autor faz uma crítica à polarização da época que dividiu a sociedade em amigos e inimigos. Como se isso não bastasse, havia ainda os inesperados encontros com os bandos do cangaço, os quais não apoiavam nenhuma das partes. Paro aqui para não dar spoiler. Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: O sedutor do Sertão ou grande golpe da mulher e da malvada.

Autor: Ariano Suassuna.

Editora: Nova Fronteira, 2020, 248 pág.

 

sábado, 19 de novembro de 2022

Ana Terra


 A obra "Ana Terra" tal como "Um certo Capitão Rodrigo" (já publicada nesse espaço) faz parte da trilogia "O tempo e o vento" do escritor gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975). Publicada separadamente, no entanto, é encontrada no volume 1 (O Continente). Caso o leitor tenha lido a trilogia ou o volume citado, trata-se da mesma trama lá encontrada. A trama tem inspiração nos fatos históricos do tempo nela retratado, dentre estes a Guerra Guaranítica (1753-1756), a Guerra da Cisplatina (1825-1828) e a Revolução Farroupilha (1835-1845), mas não é de forma alguma uma obra histórica.

            A história da personagem Ana Terra é contada no livro a partir do ano de 1777 quando esta contava vinte e cinco anos de idade e continuava solteira. É interessante, diria até poético, que a personagem ao narrar os fatos trágicos de sua vida afirma que estes sempre ocorreram em dias ventosos. Ana morava com seus irmãos Horácio e Antônio na fazenda de seus pais Maneco Terra e D. Henriqueta. Apesar de já estar com idade avançada para casamento (segundo os costumes da época), Ana não tinha interesse em buscar casamento, além do que as terras onde moravam eram muito distantes da cidade mais próxima (Rio Pardo). Tudo muda quando Ana encontra um índio ferido às margens do riacho onde lavava as roupas da família. Ana apavorada, corre avisar a família, o pai e os irmãos tratam o indígena da etnia Tapes. No entanto, quando recuperado, o índio resolve ficar e ajudar na lida da lavoura. Seu Maneco, gostaria que ele fosse embora, mas, também precisa de ajuda na lavoura. Certo dia, Ana vai lavar roupa e pressente que alguém a vigia, olha para trás e Pedro Missioneiro (o indígena) salta sobre o seu corpo e Ana que havia achado o índio bonito e, que a todo momento o observava, não oferece nenhuma resistência, beijam-se e fazem amor. Outras vezes isso ocorre, até que Ana descobre estar grávida.

            Ana comunica Pedro e pede para que fujam juntos, uma filha que perde a virgindade antes do casamento ou, pior ainda, que fica grávida sem ser casada, era uma desonra para a família. Pedro que tem uma aura mística sobre si, diz que não pode fugir e que tudo correrá como o destino determina para ele. Maneco Terra ao saber do fato manda os filhos Horácio e Antônio matarem Pedro em um local distante. Ana vê os irmãos saírem com armas e uma pá. Pedro não volta. Maneco Terra e irmãos não dirigem mais a fala à Ana. D. Henriqueta é a única a conversar com Ana.Os dias passam e Ana Terra dá a luz a um menino bonito, ao qual deu o nome Pedro (em homenagem ao pai da criança). Maneco e os tios ignoram a presença da criança que vai crescendo tendo a atenção unicamente da mãe e da avó. Maneco Terra começa a progredir e compra três escravos (um deles morre atingido por um raio). Os irmão aconselham a irmã a não se deitar com os escravos. Ana (irritada), descarrega toda a raiva que sentia contra os irmãos e o pai chamando-os de assassinos. Sempre que o filho pergunta do pai, Ana diz que ele morreu na guerra. Os anos passam, Horácio (o mais velho dos irmãos) se muda para Rio Pardo, estabelece um comércio e casa-se por lá. Antônio permanece trabalhando com o pai na fazenda e, casa-se com Eulália. Antônio e Eulália têm uma linda filha, a qual deram o nome de Rosa. Pouco tempo após cortar o cordão umbilical de sua neta, D. Henriqueta faleceu.

            Ana e Eulália ficam responsáveis pelos afazeres domésticos, os homens cuidam do cultivo do trigo, com o qual almejam ganhar muito dinheiro. Pedro cresce e demonstra cada vez mais interesse pela agricultura, o avô percebe e começa se render aos encantos deste, Ana vê o pai conversando com o seu filho, mas não interfere. Chega a notícia de que os castelhanos estão saqueando as fazendas e praticando atrocidades contra as pessoas que encontram. As mulheres e as crianças são orientadas por Maneco Terra a se esconderem no mato. Ana encaminha Eulália, Rosa e Pedro para se esconderem na mata, mas, volta para a casa, junto do pai e irmão. Questionada sobre as razões da volta, Ana diz que na casa há roupa de mulher e que ela ficará para despistar os bandidos, com isso procurando colocar a salvo Eulália e as crianças, pois, caso contrário, os castelhanos procurariam nos arredores. O pai pergunta se ela sabe o que pode lhe acontecer, Ana sem dizer palavra, dá a entender que sim. Os bandidos chegam, matam Antônio que tentou negociar para que não praticassem violência com eles e, mesmo ante a resistência possível de Maneco e dos escravos, estes são atingidos por tiros e caem desfalecidos. Os bandidos destroem a casa procurando dinheiro e jóias, questionada, Ana nega haver dinheiro em casa (ela não conta onde está o baú com dinheiro de seu pai). Os bandidos separam para levar em carroças, tudo o que há de valor na casa, a colheita de trigo e as provisões de alimentos. Levam também as poucas cabeças de gado bovino da propriedade.

            Ana é estuprada pelos bandidos, em estado de choque, desmaia. Quando volta à consciência, vê que os castelhanos se foram e que seu pai, seu irmão e os dois escravos estão mortos. Vai à mata à procura das crianças e da cunhada. Ana não conta à Eulália o que lhe aconteceu, ela percebe mesmo assim. Ela comunica à Eulália e às crianças que todos estão mortos e que eles precisam enterrar os corpos. A noite chega, as crianças dormem, Ana ouve o choro de Eulália. No dia seguinte, Ana acorda antes dos demais e descobre que a vaca mimosa fugiu dos bandidos e voltou, ela ordenha a vaca e, com grande felicidade acorda os demais oferecendo uma caneca de leite para cada um. Na manhã seguinte passa pela fazenda dos Terras duas carroças com a família de Marciano Bezerra com destino à Santa Fé, um povoado que estava sendo instalado nas terras do Coronel Ricardo Amaral. Ana e Eulália precisam decidir o que farão do resto de suas vidas, ficar na fazenda da família e reconstruí-la, tentando sobreviver ante os perigos de uma terra isolada, ou abandoná-la, se juntando à família de Marciano Bezerra e usar o dinheiro deixado pelo pai para se estabelecer no distante povoado. Fico por aqui para não dar spoiler! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Ana Terra.

Autor: Érico Veríssimo.

Editora: Companhia das Letras, 2005, 112 pág.

sábado, 12 de novembro de 2022

Uma semana triste para a cultura ou se eu morrer antes de você

  Esta semana foi particularmente triste para a cultura. Na terça-feira (08/11) perdemos o roqueiro Dan Maccaferty (1946), o vocalista original da banda escocesa Nazareth. Dan se celebrizou com sua inconfundível, potente e rouca voz. Sua música foi para mim, a porta de entrada no gênero musical que a juventude atual afirma ser gosto musical de velho. É muito bom ser velho! No dia seguinte, a quarta-feira (09/11) perdemos também Gal Costa (1945) e sua inconfundível voz, uma das maiores cantoras da MPB, além de ser uma artista dotada de consciência social, algo extraordinário em um tempo em que a alienação e o individualismo imperam. No mesmo dia, o apresentador, ator, cantor, compositor Rolando Boldrin (1936) também deixou este plano. Sobre Rolando Boldrin há algum tempo escrevi neste espaço o artigo "A carapuça que te cabe...cabe?". Neste artigo citava Boldrin quando ele, talentosamente (como sempre) contava o "causo" do "Amigo da Onça". Caso o leitor deseje ler este artigo digite/copie o link abaixo:

 https://avistademeuponto.blogspot.com/2013/09/a-carapuca-que-te-cabe-cabe.html.

            Outra lembrança que tenho de Boldrin e que considero muito oportuna se deu quando ele magistralmente declamou o poema "Se eu morrer antes de você" de Padre Zezinho (José Fernandes de Oliveira) (disponível no You Tube) e cuja letra publico aqui.

 

Se eu morrer antes de você

 

Se eu morrer antes de você, faça-me um favor:
Chore o quanto quiser, mas não brigue com
Deus por Ele haver me levado.

Se não quiser chorar, não chore.
Se não conseguir chorar, não se preocupe.
Se tiver vontade de rir, ria.

Se alguns amigos contarem algum fato a
meu respeito, ouça e acrescente sua versão.
Se me elogiarem demais, corrija o exagero.

Se me criticarem demais, defenda-me.
Se me quiserem fazer um santo, só porque morri,
mostre que eu tinha um pouco de santo, mas
estava longe de ser o santo que me pintam.

Se me quiserem fazer um demônio, mostre que
eu talvez tivesse um pouco de demônio, mas
que a vida inteira eu tentei ser bom e amigo.

Espero estar com Ele o suficiente para continuar
sendo útil a você, lá onde estiver.

E se tiver vontade de escrever alguma coisa
sobre mim, diga apenas uma frase:
"Foi meu amigo, acreditou em mim e me quis
mais perto de Deus!"

Aí, então derrame uma lágrima.
Eu não estarei presente para enxugá-la, mas
não faz mal. Outros amigos farão isso no meu lugar.

E, vendo-me bem substituído, irei cuidar de
minha nova tarefa no céu.
Mas, de vez em quando, dê uma espiadinha
na direção de Deus.

Você não me verá, mas eu ficaria muito feliz
vendo você olhar para Ele.
E, quando chegar a sua vez de ir para o Pai, aí,
sem nenhum véu a separar a gente,vamos viver,
em Deus, a amizade que aqui nos preparou
para Ele.

Você acredita nessas coisas?

Então ore para que nós vivamos como quem
sabe que vai morrer um dia, e que morramos
como quem soube viver direito.

Amizade só faz sentido se traz o céu para
mais perto da gente, e se inaugura aqui mesmo
o seu começo. Mas, se eu morrer antes de
você, acho que não vou estranhar o céu..
Ser seu amigo... já é um pedaço dele..."

        

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Uma confissão


 O escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) autor de Guerra e Paz e Anna Kariênina é presença constante neste espaço. Não poderia ser diferente, sua literatura é mundialmente reconhecida e conquista novos adeptos a cada nova geração de leitores. Tolstói teve duas fases em sua obra, sendo a primeira quando escreveu os calhamaços Guerra e Paz e Anna Kariênina, além de novelas e contos diversos. Em sua segunda fase, o escritor que nasceu em uma aristocrática família rural russa e, que nunca teve problemas com a falta de dinheiro, voltou-se para a espiritualidade. Nesta fase escreveu obras de cunho moral, espiritual e mesmo filosófico. Tolstói que havia adentrado a meia idade começa a se questionar sobre o sentido de sua existência, queria encontrar algo que desse sentido ao viver.

            O título "Uma confissão" mostra exatamente o sentido da obra. O autor relembra as várias fases de sua vida, a infância que é o momento em que é apresentado à Igreja Ortodoxa Russa, mesma religião que mais tarde o excomungou em 1901. Tal excomunhão ocorreu por suas críticas aos preceitos da referida igreja e é mantida até hoje. Enquanto criança recebia os ensinamentos religiosos e não os questionava, mas ao completar dezoito anos já não acreditava em nada. Nessa fase o autor russo ingressa na Universidade e dá início à sua vida boêmia na qual passa madrugadas jogando baralho (ganhando e perdendo dinheiro), bebendo muito e buscando o prazer sem compromisso com as mulheres. Não obteve êxito na Universidade, pois jamais se dedicou a ela, exceto no momento de seu ingresso. Tolstói lembra desses momentos e se recrimina por assim ter agido. Arrepende-se também das pessoas que matou, seja na guerra ou em duelos.

            Tolstói relembra quando amadureceu, abandonou a Universidade e voltou para Yasnaya Polyana, a fazenda que recebeu em herança de seus pais (que morreram quando ele era muito jovem). Nessa ocasião, Tolstói se casou, teve filhos, escreveu suas grandes obras (as quais recebeu a revisão de sua esposa). O autor russo sempre teve pensamentos de grandeza, desejou ser o maior escritor russo e estar no topo da literatura mundial superando Shakespeare e outros. Tolstói observa os servos (mujiques) de sua propriedade e percebe que eles levam uma vida muito sofrida, seu trabalho é pesado, no entanto, parecem ser mais felizes do que os ricos cuja vida confortável é constituída de muitas festas e, quase nenhum trabalho. No entanto, são os ricos que vivem entediados a reclamar da vida. Tolstói observa que os servos em seus últimos dias possuem uma leveza de espírito que torna a morte um acontecimento quase feliz. Ele não observa isso entre os ricos.

            A crise existencial pela qual Tolstói passou e que relatou nesta obra não constitui algo extraordinário. O leitor poderá ao ler, observar (caso seja jovem há mais tempo) que as indagações e inquietações são semelhantes as por ele(a) também vivenciadas. Tolstói que não vê sentido na vida, chega à conclusão que a fé é o que dá sentido à existência, nem por isso deixa de tecer críticas à Igreja Ortodoxa Russa e aos cristãos que vão à Igreja e, que no entanto têm sua prática muito diferente de suas falas. Ele também critica a rivalidade existente entre as religiões e, afirma que no ato em que cada uma destas igrejas se antagonizam afirmando ser a verdadeira Igreja de Deus atribuindo a falsidade a outra , provam justamente o contrário. Tolstói afirma que sempre buscou a verdade, porém para isso precisou separar a mentira e a verdade presentes no discurso da Igreja. O autor "confessa" na obra que por várias vezes pensou no suicídio, porém, encontrou na fé o sentido de sua existência. Ele acreditava que devia haver algo mais, e por isso valia a pena viver!

Sugestão de boa leitura:

Título: Uma confissão.

Autor: Liev Tolstói.

Editora: Mundo Cristão, 2017, 128 pág.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Infância, adolescência e juventude

Há uma discussão entre os bibliófilos (amantes ou colecionadores de livros) sobre a existência ou não de uma alta literatura. Sobre tal questão como disse, não há consenso. No entanto, há obras e autores que são expoentes da literatura mundial. Nesse quesito a literatura russa é muito rica. Há diversos autores russos entre os maiores do planeta e como não poderia ser diferente, a literatura russa ocupa um lugar de destaque no coração e nas mentes de grande parte da humanidade, obviamente, refiro-me àquelas/àqueles que fazem da leitura uma atividade imprescindível. O autor russo Lev Tolstói (1828-1910) é um dos grandes nomes da literatura mundial. Não por acaso, suas obras são presença constante nas estantes dos bibliófilos. É de Tolstói a célebre obra Guerra e Paz, a qual foi retratada em filmes e séries sempre com grande sucesso de público. Outra obra de Tolstói adaptada com sucesso para o cinema foi Anna Kariênina.

            Ontem concluí a leitura de "Infância, adolescência e juventude" de Lev Tolstói. Trata-se de uma obra que traz em único volume três livros do autor, sendo "Infância" publicado originalmente em 1852, "Adolescência" (1854) e "Juventude" de 1856. Tais publicações são difíceis de serem classificadas, mas penso que pertencem ao gênero romance autobiográfico, no qual o autor produz uma ficção baseada em fatos por ele vivenciados. Não se pode tomar tais produções como biografias e nem considerá-las puramente ficcionais. O volume é dividido em três partes (infância, adolescência e juventude) e o autor foi muito cobrado por seu editor para que fizesse novo volume sobre a velhice, no entanto, por motivos ignorados, Tolstói não deu prosseguimento ao projeto.

            Em "Infância" o escritor retrata a vida de Nikolai Irtêniev (alter ego de Lev Tostói). Tal como o autor, o menino é nascido em uma família da elite rural do Império Russo. Sendo a família abastada (proprietária de grandes fazendas e com imóveis em diferentes lugares da Rússia), o menino Nikolai têm privilégios inalcançáveis para grande parte da população russa. Nesta parte da obra, o autor relata histórias da infância, amizades e brincadeiras demonstrando grande saudosismo daquela que ele define como a melhor fase da vida de uma pessoa. O menino Nikolai (tal como Tolstói) perde a mãe muito cedo e embora não relate qual a doença que a levou à morte, fica nítida o amor que nutria pela mãe e a saudade que desta sentia. Criança, Nikolai era muito atento aos adultos e procurava imitá-los. Quando enfim se tornou adulto, gostaria de voltar a ser criança.

            Na parte referente à "Adolescência", a obra prossegue exatamente do ponto em que terminou em "Infância", dando a impressão de ter sido escrita em contínuo, porém as datas das publicações desmentem tal fato. Com a morte da mãe, a família passa a residir na casa da avó materna que não se conforma com a morte da filha. A avó faz alterações na educação dos netos, substituindo o preceptor (tutor ou professor encarregado da educação e/ou instrução de uma criança ou de um jovem na casa deste). Nikolai não gosta da troca do preceptor e passa a odiar o substituto. Nikolai como todo adolescente pensa que as pessoas (inclusive da família) não gostam dele e, somada à sua baixa auto-estima, há ainda o fato de seu irmão mais velho sobressair-se nos exames escolares. Nikolai aparenta (pela descrição feita pelo autor) possuir depressão, pois quando o tempo não está bom fica melancólico. O menino se interessa por conversas mais adultas e pensa que mudar o mundo não é difícil, basta ter vontade para que a sociedade seja consertada. Ao final dessa parte a avó também falece.

            Em "Juventude", Nikolai (Tolstói) tenta entrar para a Universidade e a prova de admissão é oral sobre um tema sorteado na hora e sobre o qual terá que apresentar perante uma banca de professores. Nikolai consegue entrar com méritos para a Universidade. Nesta parte da obra, a vida universitária, as amizades e as farras dos colegas são relatadas. Nikolai não é muito popular, mas, tenta se inserir no círculo de amigos, embora não frequente muito as festas regadas a álcool. Alguns de seus colegas passam a se envolver com mulheres, porém,  Nikolai, também não leva muita sorte no amor e algumas de suas paixões juvenis são frustradas. O jovem possui muitas amarras (sociais e religiosas) e preocupa-se muito em fazer o que é certo e estar à altura de sua posição social. Sua preocupação com a auto-imagem é grande. Buscando se relacionar melhor com as mulheres aprende a tocar piano, embora não seja bom nisso e nem mesmo aprecie tanto assim, mas quer impressioná-las. Nessa fase da vida, Nikolai fala sobre as obras literárias que lê e relata a sua vida universitária, na qual tal como o autor não era dedicado. Ao fazer sua primeira prova sobre Cálculo Diferencial e Integral (disciplina que desperta ódio ou paixão, jamais indiferença para o pessoal da área de Ciências Exatas) leva bomba. Psicologicamente abalado e com sua imagem arranhada, seu pai lhe sugere fazer nova tentativa em outra instituição. A personagem do pai de Nikolai (alter ego de Lev Tolstói) é ficcional, pois o escritor perdeu a mãe e também o pai muito cedo, dessa forma a passagem em que este tendo ficado viúvo, resolve se casar com uma jovem que não é bem recebida pelos irmãos não corresponde à história da família. Na fase de juventude, Nikolai demonstra ser uma pessoa narcisista e pouco afeita à amizades com pessoas que não estejam no mínimo em igualdade quanto à sua condição social. Paro aqui. Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Infância, adolescência e juventude.

Autor: Liev Tolstói.

Editora: L&PM, 2013, 400 pág.

 

A morte e a morte de Quincas Berro D'Água

 

Jorge Amado (1912-2001) nascido Jorge Leal Amado de Faria é o segundo escritor brasileiro de maior número de vendas de livros sendo superado apenas por Paulo Coelho. Jorge Amado é o autor mais adaptado do cinema, do teatro e da televisão brasileira. Sua obra é formada por 49 livros, os quais foram publicados em 80 países e traduzidos para 49 idiomas. Ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais e foi eleito em 1961 para a Academia Brasileira de Letras. Jorge formou-se em Direito, porém, jamais exerceu a advocacia. Tendo estudado na década de 1930 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tomou conhecimento dos ideais do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual se filiou, tendo sido eleito deputado federal em 1946. Sua atuação como parlamentar esteve entre outras ações pautadas na defesa da garantia da liberdade religiosa para os cidadãos. Ao se postar ideologicamente à esquerda tanto em suas obras como na política foi obrigado a viver exilado na Argentina, no Uruguai, em Paris e em Praga no período em que Vargas esteve no poder. Jorge Amado era vigiado tanto pela CIA quanto pelos serviços de inteligência da ex-União Soviética. Ao tomar conhecimento das atrocidades praticadas por Stalin na União Soviética, as quais foram reveladas pelo Secretário Geral do PCUS Nikita Krushev, desligou-se do Partido Comunista Brasileiro. A obra de Jorge Amado é essencialmente dedicada às raízes nacionais e suas máculas. Sendo assim, nela estão presentes os problemas nacionais e as injustiças sociais, mas, também o folclore, a política, as crenças, as tradições e a sensualidade do povo brasileiro. Dentre os grandes sucessos adaptados para a telinha e para a telona estão Dona Flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tieta do Agreste, Gabriela, cravo e canela e Tereza Batista cansada de guerra. Jorge Amado era muito estimado pelo povo baiano, especialmente as pessoas adeptas do sincretismo religioso que tão bem caracteriza a cidade de Salvador. Muito bem relacionado, teve a amizade de grandes nomes da literatura nacional como Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato e Gilberto Freyre. Também trocou correspondências com Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marquez e José Saramago.¹

            Na novela aqui resenhada, Joaquim Soares da Cunha é um cidadão respeitável, servidor público dedicado e  honrado marido e pai cuja família goza de prestígio junto a tradicional sociedade de Salvador. Joaquim vive uma vida pacata, porém, não é feliz da porta para dentro de casa, afinal é ali que a vida real acontece. A esposa de Joaquim é mais rígida que qualquer chefe que ele teve no funcionalismo público. Sua filha é uma cópia de sua esposa no temperamento. Quando completou cinquenta e cinco anos, Joaquim se aposentou e decidido a viver melhor o resto de sua vida, abandonou a esposa e a casa, largou as amizades que mantinha com as pessoas de sua classe social e passou a viver na rua, frequentando prostíbulos e bares nos quais bebia muito. Em certa ocasião, Quincas (como lhe chamavam) se encontrava num bar e serviu-se do líquido que havia em uma garrafa transparente e ao sorver o primeiro gole, cuspiu e gritou: é água! A partir desse momento foi apelidado de Quincas Berro D'Água. Quincas tinha nos vagabundos, nas prostitutas, nos jogadores de baralho, nos moradores de rua, seus amigos da nova vida, afinal, tivera uma morte social (primeira morte) quando abandonou a família e as amizades que mantinha na tradicional sociedade de Salvador. Em sua nova vida, Quincas não tinha preocupações quanto a comportar-se adequadamente para manter a reputação sua e/ou de sua família. A família é que se preocupava, pois Quincas que tantas vezes frequentara a coluna social dos jornais, agora neles aparecia cada vez que se metia em confusão e era preso, sendo que a família era obrigada a fazer esforços para retirá-lo da cadeia. A preocupação da ex-esposa e da filha (que se casara) era com os vexames que Quincas causava ao bom nome da família perante a sociedade. De nada adiantava, aconselhar Quincas, ele xingava todo mundo e voltava para a vida boêmia. Considerava seu genro um bestalhão (mandado pela jararaca da sua filha), como ele um dia fora por sua mulher, mas, ele tivera coragem de se libertar, seu genro não.

            A vida desregrada de Quincas ia bem, ou pelo menos, como ele desejava, até que ele morre (segunda morte). Seus amigos de bebedeira, de jogatina bem como as prostitutas ficam tristes com sua morte e tentam lhe dar o velório que (Quincas que tanto amava a vida) gostaria de ter, porém, sua família busca o corpo e deseja dar a ele um velório digno da classe social a que a família pertencia, enaltecer as boas qualidades de Joaquim Soares da Cunha e com isso apagar do imaginário social a má imagem do boêmio e vagabundo que ele se tornara. A morte de Joaquim é de certa forma um alívio para a família, afinal, virada essa página, não haveriam mais vexames a manchar a reputação da família perante a sociedade. O imbróglio é que a família conservadora e os amigos da vida desregrada não concordam com o formato do velório que o morto merece e gostaria de ter e, passam a disputá-lo. Salvar a reputação ou fazer uma despedida de arromba desse mundo? É a questão!  Para evitar spoiler, paro aqui. Fica a dica!

Referência:

1. Wikipédia.

Sugestão de boa leitura:

Título: A morte e a morte de Quincas Berro D'Água.

Autor: Jorge Amado.

Editora/Ano: Companhia das Letras, 1ª edição,  2008, 120 p.


terça-feira, 18 de outubro de 2022

Odorico na cabeça

 

Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) foi romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador (BA) e faleceu em São Paulo. Dias Gomes sempre demonstrou talento para escrever peças de teatro, sendo que com apenas quinze anos escreveu sua primeira peça. Em 1939, ganhou o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro com a peça “Comédia dos moralistas”. Em 1943, ingressou no curso de Direito na Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, porém abandonou o curso no 3º ano. Em 1950, casou-se com Janete Emmer (mais tarde conhecida como Janete Clair, famosa escritora de novelas da Rede Globo) com quem teve cinco filhos. Em 1983 ficou viúvo, e mais tarde casou-se com Maria Bernadete com quem teve mais duas filhas. Dentre as peças que escreveu, “O pagador de promessas” foi traduzido para mais de uma dúzia de idiomas, dando ao autor projeção internacional. A peça foi encenada em todo o mundo. A adaptação da peça para o cinema lhe rendeu (dentre vários outros prêmios), a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1962. Ao fazer uma visita à União Soviética em 1953, Dias Gomes foi demitido da Rádio Clube e seu nome foi incluído na “lista negra”. Seus textos tinham que ser negociados com a TV Tupi em nome de colegas. O autor teve várias de suas obras censuradas pela ditadura militar (1964-1985). Em 1964, foi demitido da Rádio Nacional por conta do conteúdo de sua obra. A partir de então, participou de manifestações contra a censura e em defesa da liberdade de expressão. Em 1980, com a decretação da Lei da Anistia, foi reintegrado ao quadro da Rádio Nacional e, sua peça Roque Santeiro, após dez anos de proibição pela censura, foi liberada e adaptada para a televisão pela Rede Globo e, exibida com grande sucesso junto ao público. Dias Gomes é ainda hoje, um dos autores brasileiros mais premiados por sua atuação no rádio e por sua obra no teatro, cinema e televisão. Em 11 de abril de 1991, Dias Gomes foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. ¹

            Tão logo soube da republicação do livro "Odorico na cabeça" tratei de adquiri-lo e ao tê-lo em mãos iniciei sua leitura, não o deixando na fila de espera. No livro, o universo das personagens de Sucupira (que embora escrito há tanto tempo) não perde sua atualidade, tamanho os descalabros que constatamos na realidade política e social brasileira. Ao ler a obra, temos a impressão que Dias Gomes escreveu determinadas personagens inspirado em personalidades da política e da sociedade brasileira atual, mesmo sabendo que suas fontes de inspirações eram personalidades e a sociedade de sua época de vivência. Isso nos leva a constatar que o tempo passa, porém, a hipocrisia, o falso moralismo, a malandragem e a corrupção permanecem e, não faltam personalidades cujo perfil se encaixa nas personagens de Sucupira. O Bem-Amado levado ao ar pela TV Globo obteve estrondoso sucesso e ainda hoje, muita gente lembra com saudade de suas personagens e tramas. Não falta quem diga que as produções televisivas atuais não conservam a mesma qualidade de tempos passados.

            O livro "Odorico na cabeça" traz os seguintes contos: O Chafarótico; Só cai quem monta; A Guerra das Malvadas; Um analista em Sucupira; Um jegue no Vaticano; O Finado que o vento levou e, Sucupira vai às urnas.  Em O Chafarótico, o conto trata de um chafariz restaurado em que D. Pedro I e uma de suas amantes teriam parado para beber água e cujas mulheres que dessa água passaram a beber começaram a libertar suas fantasias sexuais para o escândalo da sociedade e a indignação dos maridos traídos; Em "Só cai quem monta", Odorico cai do cavalo em sua fazenda, quando deveria estar dando expediente na prefeitura, mas preferiu estar em companhia de uma bela mulher do Rio de Janeiro a qual reivindica constantemente seus préstimos amorosos; Em A Guerra das Malvadas" Dias Gomes faz uma sátira à Guerra das Malvinas e a intenção das autoridades cuja impopularidade constatada nas pesquisas as levou a unir o povo em torno de uma causa (que se demonstrou perdida) com a real intenção de se manter no poder; No conto "Um analista em Sucupira", as pessoas de Sucupira procuram o profissional com a intenção de superar traumas e bloqueios psicológicos, o que acaba por mudar a forma de agir dos mesmos para a indignação da conservadora sociedade sucupirana que reage contra a presença do analista na cidade; O conto  "Um jegue no Vaticano" trata da promessa de uma personagem de presentear o Papa com o seu jegue de estimação em troca da recuperação de uma estátua de São Pedro que fora roubada da Igreja. A personagem não desiste de cumprir a sua promessa mesmo ante os religiosos que afirmam as dificuldades para enviar o jegue para Roma e que dadas as dificuldades, o cumprimento não é necessário e que, o que vale é a intenção; Em "O Finado que o vento levou" Odorico entusiasma-se pela possibilidade de, enfim inaugurar o cemitério que construiu e, que por ironia do destino, ninguém mais morre na cidade desde que ele ficou pronto (conseguirá?). Em Sucupira vai às Urnas, Odorico compra uma estação de rádio e monta um jornal dotado de uma moderna gráfica para fazer às calúnias e difamações da imprensa "marronzista" e "comunista" com seus jornalistas "subversivos" e "esquerdistas" (na obra quem faz oposição a Odorico é sempre por ele considerado comunista e esquerdista). Com ela pretende publicar a verdade, mas não a verdade dos opositores e sim a única verdade, a verdade dele.

            O leitor que teve a oportunidade de assistir "O Bem-Amado" ao ler a obra em questão sente saudades da produção televisiva cuja personagem de Odorico foi encarnada pelo genial Paulo Gracindo (1911-1995) e o ex-cangaceiro Zeca Diabo por Lima Duarte. Gostei de todos os contos, porém, "A Guerra das Malvadas" e "Sucupira vai às Urnas" estão acima da média dos contos do autor, Lembrando que em se tratando de Dias Gomes, a média é sempre muito alta! Fica a dica"  

1. Fonte: Disponível em:  http://www.academia.org.br/academicos/dias-gomes/biografia - acesso em 14 de Outubro de 2022.

Sugestão de boa leitura:

Título: Odorico na cabeça.

Autor: Dias Gomes.

Editora: Bertrand Brasil, 2022, 2ª edição, 153 p.


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Deus vê a verdade, mas custa a revelar (com spoiler)


 O conto "Deus vê a verdade, mas custa a revelar" aqui resenhado faz parte do livro "Senhor e servo e outras histórias" de Liev Tolstói (1828-1910). Com o presente artigo completo a resenha de tal obra, uma vez que já resenhei e publiquei neste espaço os contos "Senhor e servo" e "O prisioneiro do Cáucaso". Devo dizer que este é o conto que menos gostei no livro, nem por isso considero ser de menor qualidade. Talvez seja o fato de que a injustiça permeia a obra do início ao fim. Isso em nada desabona o conto, tendo em vista que a injustiça e a tristeza permeiam/permearam vidas que em vão sonham/sonharam dias melhores ao longo de toda a sua existência. No conto, o jovem e belo mercador Aksionov resolve viajar para fazer negócios numa feira que ocorria na cidade de Níjni. Sua jovem esposa lhe pede para que não viaje, pois tivera um pesadelo no qual ele lhe aparecia com os cabelos grisalhos. Aksionov ri e fala que ela é medrosa e que nada lhe acontecerá, pois quando com ela se casou, abandonara a bebida e as confusões da solteirice. Durante a viagem, ele encontra um mercador conhecido e seguem juntos e ao cair da noite se hospedam numa estalagem. Os companheiros ficam em quartos contíguos, no entanto, Aksionov que sempre dorme pouco, tomado pela ansiedade, resolve sair mais cedo para acelerar a viagem. E no final do dia, já instalado em outro local, enquanto tocava violão e cantava, vê chegar uma tróika (trio) formado por dois policiais e um funcionário que lhe questiona sobre sua identidade, origem e caminho percorrido. Aksionov se irrita com os questionamentos e diz não ser criminoso para ser interrogado. É informado do assassinato de seu companheiro de viagem na estalagem e, seus pertences passam por uma revista, sendo que em sua bolsa encontram uma faca suja de sangue. Aksionov fica pálido, gagueja e jura não ter matado o seu amigo. Aksionov é preso e seus pertences lhe são tomados.

            A polícia vai à Vladimir (cidade de residência de Aksionov) e questiona várias pessoas sobre ele e, ouve de todos que é uma pessoa honesta e boa, mas que na juventude bebia muito e costumava arranjar confusões. Iván Dimitríevitch (Aksionov) vai a julgamento pelo roubo de vinte mil rublos e assassinato e é condenado ao chicoteamento e ao desterro na Sibéria onde passaria o resto dos seus dias prestando serviços forçados. Sua esposa e seus filhos (crianças) vêm lhe ver e o encontram com roupa de prisioneiro, abatido e com vários fios de cabelos grisalhos. Aksionov pede à esposa que recorra ao Tzar, ela afirma que fez isso, mas, que a carta não chegou até ele. Sua esposa deixa transparecer que duvida da palavra do marido quando este afirma não ter matado o mercador. Aksionov, após recuperar-se das chibatadas é enviado à Sibéria. Ao adentrar a penitenciária de serviços forçados passou a rezar para Deus para que a verdade fosse revelada e ele fosse libertado. Não conseguia conceber que Deus permitisse que um inocente fosse castigado por um crime que não cometeu. Seus cabelos tornaram-se grisalhos, sua postura tornou-se curva, seu olhar, triste, não conseguia mais sorrir, tornara-se calado. Quando lhe perguntavam porque estava ali, dizia que devia ser para pagar seus pecados. Não contava mais o que lhe ocorrera, afinal quase ninguém acreditava que ele era inocente.

            Ia sempre às missas na penitenciária e fazia parte do coral, ainda conservava sua bela e afinada voz. Sempre que havia uma confusão entre os presos era chamado para decidir quem estava com a razão e aconselhar os envolvidos. Os demais presos gostavam dele e o chamavam de vovô (estava preso há vinte e seis anos e aparentava ter mais idade do que tinha). Também o diretor e os guardas da penitenciária gostavam dele por seu bom comportamento. Nesse tempo em que esteve preso jamais recebeu qualquer carta ou notícias de sua família. Sempre que chegavam novos prisioneiros, os demais se reuniam em redor destes, para saber quem eram, de onde vinham e por que foram condenados. Em certa ocasião, chegou um preso de nome Macar Semionóvitch vindo da cidade de Vladimir e Aksionov lhe pergunta se conhece a família de um mercador chamado Iván Dimitríevitch, este lhe afirma que o mercador fora preso há muito tempo, e que sua esposa já havia falecido, mas que seus filhos eram mercadores ricos. Macar conta que considerava sua prisão injusta, mas, que deveria ter vindo para a Sibéria há muito tempo, pois matou um homem, mas a polícia não descobriu e prendeu o homem errado, então ele não tinha culpa se a polícia não fora capaz de o achar. Macar conta a Aksionov que pretendia roubar e matar também aquele homem, mas, que com a chegada de alguém precisou fugir e escondeu a faca nos pertences dele (Aksionov). Aksionov ouve e tomado pela raiva, passa duas semanas sem dormir,  rezando o tempo todo. Em certo dia, flagra Macar abrindo um túnel para fugir e, Macar o avisa que deixa ele fugir junto, mas que se contar o matará. Aksionov diz a Macar que este o matou há vinte e seis anos. Diz também que não tem porque fugir, afinal não tem para onde ir, sua esposa está morta e seus filhos não se lembram dele. Diz ainda que vai pensar se contará ou não. A polícia descobre o buraco e questiona os detentos, porém ninguém fala. Os policiais vão até Aksionov (sabendo ser ele uma pessoa correta) e lhe perguntam, mas ele responde: Não vi e não sei. O assassino implora por seu perdão e Aksionov lhe diz: Deus vai perdoar você, talvez eu seja cem vezes pior do que você, por isto estou aqui. Aksionov passa a viver seus dias em extrema paz. Macar (arrependido) contraria Aksionov e confessa o crime aos policiais. Quando enfim chega a ordem judicial para a soltura de Aksionov, encontram-no morto.

Sugestão de boa leitura:

Título: Senhor e servo e outras histórias.

Autor: Liev Tolstói.

Editora: L&PM, 2009, 128 pág.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Do amor e outros demônios

Antes de ser escritor, Gabriel García Márquez (1927-2014) foi jornalista. E na presente obra ele conta que em um dia qualquer do ano de 1949, sem ter uma pauta especial lhe foi incumbida a tarefa de ir até o histórico prédio do Convento de Santa Clara, o qual iria ser demolido para a construção de um hotel cinco estrelas em atendimento à demanda do pujante turismo da colombiana e caribenha cidade de Cartagena das Índias. Naquele momento estavam sendo abertas as criptas onde estavam enterradas freiras da Congregação das Irmãs Clarissas e também pessoas da nobreza colonial, período em que a cidade era a mais povoada do Vice-Reinado de Nova Granada cujo território deu origem à Colômbia, Panamá, Equador e Venezuela. Muitos cadáveres haviam sido ali depositados há mais de duzentos anos e suas ossadas estavam sendo entregues às famílias sempre que estas as reclamavam. Outras (não reclamadas) seriam transferidas para o cemitério. Enquanto estava lá, chamou a atenção de Gabriel García Márquez quando da abertura de uma cripta cuja  placa  registrava ser da Marquesa Sierva Maria de Todos los Àngeles, na qual estava a ossada de uma criança com uma longa e vasta cabeleira cor de cobre, a qual mediu vinte e dois metros e onze centímetros. Ante seu espanto, o pedreiro disse ao jovem jornalista que isso era plenamente normal pois, o cabelo continua crescendo após a morte. Márquez lembrou que sua avó lhe contara sobre a lenda de uma marquesinha cujo cabelo se arrastava no chão tal qual uma cauda de vestido de noiva a quem vários milagres foram atribuídos. A longa cabeleira nunca cortada desde sua infância era parte de uma promessa cujo término seria com seu casamento.

            O jovem jornalista voltou ao jornal e fez a matéria sobre a demolição do convento, porém, nunca esqueceu a história. Em 1994, já consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982, retornou ao tema publicando a presente obra. Os pais de Sierva Maria de Todos los Ángeles se casaram sem que entre eles houvesse amor, quando nasceu (século XVIII) foi criada por uma escrava de nome Dominga del Adviento. O Marquês e sua esposa foram totalmente negligentes com a criança que somente se sentia à vontade quando estava em companhia das escravas. Com elas aprendeu a cultura e algumas línguas africanas sobretudo a língua yorubá que falava fluentemente. A Cartagena da Índias na qual viveu a pequena marquesa era também a mais rica cidade do Vice-Reino de Nova Granada. Tinha um milionário comércio de escravos. Era de seu porto que navios carregados de ouro e prata partiam para a Espanha e era por ele que chegavam mercadorias e pessoas da metrópole. Em certa oportunidade, a marquesinha com doze anos de idade foi ao porto junto com uma das escravas para adquirir alimentos e acabou sendo mordida no tornozelo por um cão portador de raiva.

            Quando seu pai tomou conhecimento do fato ocorrido, levou-a de volta para a Casa Grande, mas, ela não se habituou e voltou a dormir com as escravas na senzala. O pai tentou se redimir de sua negligência buscando a melhor medicina da época (a qual não era grande coisa), afinal, a doença era à época incurável, A menina ante os maus tratos (procedimentos médicos rudimentares da época) que recebia dos médicos começou a reagir de forma hostil e, tendo em vista que a doença era incurável, o Marquês foi procurado por religiosos que lhe orientaram a interná-la no Convento das Freiras Clarissas para que ao menos sua alma fosse salva. O conhecimento acerca da doença era quase nenhum e, os religiosos viam na loucura que se instalava nos doentes, a possessão de demônios sobre seus corpos e que atormentavam suas almas. A abadessa do Convento não gostou de receber a menina e a queria longe dali no menor tempo possível, para tal, carregava de tinta as atas que fazia sobre ela atribuindo-lhe a culpa por chuvas fortes, revoadas de pássaros, eclipse e tremor de terra. Um jovem padre de nome Cayetano Delaura foi designado para fazer seu exorcismo porém, sonhou com ela antes de a conhecer e ao conhecê-la esta lhe contou o mesmo sonho. O jovem padre que sonhava ser bibliotecário do Vaticano era muito culto, possuía e lia livros proibidos pela Santa Inquisição. O padre teve pena da marquesinha e ao visitá-la frequentemente, acabou por se apaixonar por ela. Tendo tomado conhecimento de uma passagem secreta entre o hospital e o convento, começou a fazer visitas noturnas à Sierva Maria que também por ele se apaixonou. Cayetano tenta mostrar aos demais religiosos que não acredita que ela esteja possuída por demônios e afirma: "Ás vezes atribuímos ao demônio coisas que não entendemos. Sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus". Os exorcismos começaram por intermédio de outro sacerdote e a menina aterrorizada se tornou ainda mais hostil reforçando a ideia de estar possuída por demônios. Sierva Maria propõe ao padre Cayetano Delaura fugirem e este se recusa, pois quer encontrar um meio legal para livrá-la desse sofrimento e conseguir dispensa de seu ofício para com ela viver. Paro aqui para não dar spoiler! Fica a dica!

 

Sugestão de boa leitura:

Título: Do amor e outros demônios.

Autor: Gabriel García Márquez.

Editora: Record, 2020, 192 pág.