A Igreja Católica foi para mim a escola que não tive, pois, quando estudante, o país vivia a ditadura militar (1964-1985), e, o ensino ministrado era totalmente acrítico. Os mestres tinham receio de possíveis denúncias, afinal, nunca faltaram sátrapas. Desobedecer a ordens dos generais era incorrer em grave perigo ou de no mínimo, ter sérios aborrecimentos. Foi ao participar de grupos de jovens da Pastoral da Juventude que tive a formação teórica acerca das mazelas de nosso país, obviamente, isso ocorreu em fins do período ditatorial e início do período democrático, mas, contribuiu para sanar em parte minha formação até então deficitária, afinal, educar é tirar vendas e não tapar os olhos dos estudantes para algo que alguém não quer que seja visualizado. Foi assim que tomei conhecimento teórico acerca da concentração da terra em poucas mãos (não raro, fruto da grilagem) e da violência no campo, da situação da classe trabalhadora espoliada e também da população privada da dignidade humana, as pessoas que viviam/vivem com insegurança alimentar, subnutridas e que habitavam barracos ou moravam nas ruas. Até hoje tenho o sentimento que aquele trabalho desenvolvido com a juventude foi o mais próximo que a Igreja esteve dos ensinamentos de Jesus Cristo, afinal, ao lado de quem estaria Jesus se hoje estivesse na Terra?
Não consigo precisar a data, porém, acredito que entre
fins dos anos 1980 ou início dos anos 1990, a Prefeitura Municipal de
Laranjeiras do Sul conseguiu recursos para um projeto de moradia popular e
contatou a Igreja Católica, que por meio da juventude (grupos de jovens)
contribuiu cadastrando as pessoas que seriam candidatas a receber moradias em
alvenaria. Com um formulário que nos foi entregue, íamos em duplas, visitando
cada barraco. Estes eram feitos de lâmina de madeira, lonas, tábuas com grandes
frestas entre elas e piso de chão batido. Vi crianças magras com barrigas
salientes, provavelmente, acometidas de verminose. Vi um menino soltando uma
lombriga (áscaris lumbricóides) pela boca. Encontrei uma senhora que pegava
água no pequeno rio (arroio dos Padres) à jusante de uma patente (sanitário
improvisado) instalada sobre a água do riacho e perguntei-lhe o que iria fazer
com a água, falou-me que iria preparar o almoço. Nada falei, não havia
alternativa, a Sanepar ainda não havia levado água tratada até a localidade.
Entramos num barraco que tal como os demais era pobre, mas, muito limpo,
pertencente a uma mulher muito jovem. Iniciei a entrevista, nome; idade: 18
anos; casada; do lar; nível de instrução, etc. nome do marido; idade: 25;
profissão: calceteiro a serviço da Prefeitura Municipal. Perguntei se tinham
filhos, dois, idade das crianças, quatros anos e oito anos, automaticamente fiz
a conta (18-8=10) e assustei-me. Contou-nos que eram primos e que não queriam
ter mais filhos. Perguntei-lhe e ela disse que estava tomando anticoncepcional.
Os dois meninos chegaram quando estávamos saindo, estavam limpinhos, roupas
simples, mas, bem cuidados. Despedimo-nos. Nunca me esqueci dessa entrevista e
da oportunidade que tive de conhecer esse lugar de toda a pobreza a denunciar a
injusta sociedade que construímos. O projeto foi levado a cabo, centenas de
casas foram construídas (bairro Paz Nascente), mas, não foi suficiente. Muitas
famílias não receberam casas. A água tratada chegou. Depois veio até uma vaca
mecânica para ajudar no combate à subnutrição infantil.
Feita essa contextualização, cito o livro de Carolina
Maria de Jesus (1914-1977), que acabei de ler. Carolina, solteira, mãe de três
crianças narra em primeira pessoa, as angústias da vida de sua família e das
pessoas que tal como ela habitavam a favela do Canindé em São Paulo/SP. A
insegurança alimentar, os dias não raros em que teve de comunicar aos filhos
que não haveria almoço, a felicidade das crianças quando havia uma refeição minimamente
decente. As mortes (fome, doenças, violência) na favela. A violência dos
maridos contra suas esposas. A dificuldade que tinha em conseguir dinheiro para
o alimento do dia, para o que vendia ferro, papel, etc. que encontrava nas
ruas. Carolina adorava ler e escrevia seu diário pensando em torná-lo livro de
sucesso que retiraria sua família da favela. Mandou os originais para ser
publicado na revista Seleções do Readers Digest, porém, para a sua decepção,
lhes foram devolvidos por não haver interesse na publicação. Até o dia em que o
jornalista Audálio Dantas a descobre, lê seu diário e o publica na Folha da
Noite e na Revista O Cruzeiro. Em seguida, o livro é publicado (1960) e
traduzido para treze idiomas. Carolina consegue sair da favela com a venda do
livro, mas, nunca deixa a pobreza, apesar de publicar outras obras. Trata-se de
uma obra de literatura-realidade. Nela Carolina, mostra as mazelas da vida dos
excluídos, em meio a pílulas de sabedoria popular com que presenteia seus
leitores. A leitura da obra é extremamente necessária, principalmente neste
momento em que as cidades formam bolhas na forma de bairros e condomínios
fechados a isolar da realidade do entorno. Saber a verdade dói, mas, humaniza!
Sugestão
de boa leitura:
Título:
Quarto de despejo: Diário de uma favelada.
Autor:
Carolina Maria de Jesus.
Editora/Ano:
Editora Ática, 2018.
Preço:
R$ 38,94.
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