Há
alguns dias, devido o recesso escolar, resolvi escolher um livro que fosse
interessante e cuja leitura não exigisse grande concentração, afinal, a mente,
o instrumento de trabalho de todo professor, também precisa de descanso. Eis
que me deparo com o livro Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste
do escritor Frederico Pernambucano de Mello (1947). Na ocasião, ainda não tinha
conhecimento da série de título homônimo do canal de streaming Globoplay, que
pretendo assistir brevemente.
O escritor escocês Charles
MacFarlane (1799-1858) citado no livro de Mello, afirma acertadamente:
"Existem poucos assuntos que nos interessem mais que as aventuras de
salteadores e bandidos". Provavelmente foi essa a causa da escolha que fiz
dessa obra, mesmo já tendo lido alguns clássicos sobre o tema.
Ao iniciar a leitura, observo que a
obra, não traz apenas relatos históricos, mas toda uma discussão sociológica,
geográfica, histórica e política sobre o cangaço, sua origem, extensão, personalidades
principais e partícipes. Mesmo assim, dada a boa escrita do autor, a qual torna
a leitura prazerosa, não desanimei e encarei o calhamaço.
Ao tratar do tema do cangaço, uma
das perguntas sempre feitas, é o que levou tais pessoas dele participarem.
Houve escritores que afirmaram se tratar de uma revolta contra o monopólio da
terra e a exploração do trabalhador rural pelo latifundiário; Houve quem
considerasse que o cangaço era uma revolta contra o capitalismo explorador,
mesmo que seus atores (cangaceiros) fossem ignorantes da teoria marxista que,
no entanto, agiam imbuídos pelo sentimento intrínseco. Também há aqueles que
viram no cangaço, uma resposta ao autoritarismo dos coronéis políticos do sertão.
Segundo
Frederico, não há um único motivo, mas três, a saber: 1. O cangaço como meio de
vida, na qual os criminosos, têm no cangaço, a sua forma de subsistência, sendo
que muitos chegaram a enriquecer no ofício e se "aposentaram", indo
morar em paragens em que não eram conhecidos (muitos não viveram para tal). 2.
O cangaço de vingança, quando os criminosos entraram para o cangaço, para fazer
a vingança, seja de um pai/irmão assassinado ou de uma moça da família que
tenha sido deflorada e que deixaram o cangaço após a realização da vingança. 3.
O cangaço como refúgio que trata-se de homens que cometeram crimes, tais como
homicídios e/ou estupros e têm a cabeça a prêmio, dessa forma entram para o
cangaço para ter maior proteção, sendo que dele não podiam se retirar.
Surpreendentemente, o cangaço também
recebeu rapazes das melhores famílias, sem qualquer influência doméstica e, sem um motivo
aparente que não a imaginação fértil, da vida de aventura e suposto heroísmo,
prova de fogo de sua masculinidade. Tais jovens sumiam de suas casas e, depois
a família, atônita recebia a notícia de que estavam fazendo parte de algum
grupo de cangaço. Há relato de um cangaceiro que não soube explicar por que
entrou para o cangaço.
Na obra, Mello descreve os papeis de
sertanejos, cabras, capangas, jagunços, pistoleiros e cangaceiros. Descreve
ainda os hábitos dos cangaceiros que abusavam de perfumes, jóias e roupas com
detalhes bordados com uma vaidade que não ficava aquém do sexo feminino. Também
suas crenças (religiosas ou não), como a de que após o ato sexual o homem
perdia sua "oração" e ficava vulnerável às balas, por isso era
melhor, não ter mulher no bando.
O cangaço foi um fenômeno que
ocorreu no século XIX e XX, sendo o apogeu de 1870 a 1940. Estudos demonstram que
após as grandes crises de seca no sertão nordestino, as ações dos cangaceiros
se intensificavam. Frederico classifica os surtos de cangaço como endêmicos em
alguns períodos que ficaram restritos a algumas áreas específicas e como
epidêmicos quando se disseminava por grande parte da região nordeste.
O sertão nordestino nos estados de
Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará foi o
ambiente ideal para que os criminosos agissem, utilizando a estratégia de
guerra de guerrilha, atacavam fazendas, vilas e cidades e se embrenhavam na
caatinga, fazendo longas caminhadas diárias, para surgir em um local distante,
para fazer nova surtida. A geografia do sertão nordestino quanto ao relevo, ao
clima e à vegetação é perfeita para os criminosos se esconderem, pois se
tornaram exímios na orientação e deslocamento e faziam seus locais de descanso
em pontos estratégicos para o enfrentamento, caso fossem surpreendidos.
É importante dizer que os
cangaceiros não tinham patrão, e em suas longas travessias, eram protegidos por
alguns fazendeiros que lhe davam pouso temporário, para fins de descanso em
suas terras e, que por isso eram chamados de coiteiros. Os fazendeiros em troca
recebiam "proteção" dos cangaceiros, mas, não havia relação de submissão
de nenhuma das partes, que se beneficiavam mutuamente desse esquema. Também
coronéis políticos da região mantinham relações de troca de favores com
cangaceiros.
A sociedade sertaneja não gostava da
polícia, que era considerada muito violenta e muitas vezes repassavam
informações de sua chegada aos cangaceiros. Havia dentre os cangaceiros, alguns
que distribuíam algum dinheiro para as pessoas pobres por onde passavam. Também
não se pode romancear o período, pois os ataques de grupos de cangaço à localidades
sertanejas costumavam resultar em saques, destruição, mortes e estupros,
principalmente quando havia resistência da população local.
Os cangaceiros sempre afirmavam ter
um "escudo ético", ou seja, um motivo que os levou para o mundo do
crime. A crença popular era a de que no sertão quem não se vinga, já está
moralmente morto. Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião (1898-1938)
afirmava que tinha entrado para o cangaço para se vingar de seus desafetos José
Saturnino e do tenente José Lucena.
Apesar de seu escudo ético, estudos
mostram que Lampião nunca se esforçou em fazer sua vingança. Há até um relato
de um famoso pistoleiro que se ofereceu para "fazer o serviço" para
Lampião, mas este afirmou que não precisava, pois era assunto antigo, caduco,
tendo agradecido a oferta com alguns agrados materiais, uma faca finamente
acabada e algum dinheiro.
Por esse motivo, Lampião é classificado como
integrante do cangaço meio de vida. Lampião, sempre que era questionado sobre
por que não aproveitava a fortuna que tinha e se retirava do cangaço, se
irritava e devolvia a resposta com uma pergunta: o senhor se retiraria de um
negócio que está rendendo bem?
Lampião, em que pese, a sua fama de
violento e cruel, e isso é verdadeiro, em muitas ocasiões, com fazendeiros e autoridades que
lhe eram bem quistas, foi relatado como uma "moça" na delicadeza com
que tratava seus amigos de fina estirpe.
No auge do cangaço, alguns
estudiosos tiveram contato com membros do cangaço e os descreveram como
resolutos, bravos, vingativos e extremamente ignorantes, mas, também corajosos,
generosos, sinceros e hospitaleiros. Nem por isso, pode-se esquecer os inúmeros
crimes horrendos praticados por cangaceiros, um deles, José Baiano detestava
mulheres que mantinham cabelo curto. Há relatos de estupros perpetrados por
esse cangaceiro que marcava suas vítimas com ferro quente com suas iniciais,
uma delas, cuja fotografia aparece no livro, foi marcada em uma das faces.
Maria Gomes de Oliveira (Maria
Bonita) seguiu Lampião no cangaço por sua livre vontade, mas nem todas tiveram
essa opção. Havia dentre as mulheres, em grupos de cangaço, aquelas que foram
obrigadas a seguir o cangaceiro que lhe raptou. O grupo de Lampião, foi
pioneiro em admitir mulheres no bando, mas isso não era algo comum. Enquanto
Sérgia Ribeiro da Silva (1915-1994), vulgo Dadá (esposa de Corisco), pegou
realmente em armas, em geral, as cangaceiras não faziam a frente de luta
(apesar de portarem pistolas e facas) e nem abriam mão de sua feminilidade.
Eram para os cangaceiros um oásis de amor, paz e delicadeza em meio a
rusticidade, a aspereza da caatinga e do cotidiano do cangaço. Filhos quando
vinham eram enviados para adoção por pessoas devidamente selecionadas, às quais
era enviada uma carta e a recomendação quanto ao nome para batismo.
Lampião ficou rico com o cangaço e tinha
amigos que cuidavam do seu tesouro, emprestava dinheiro a juros e cobrava os
devedores inadimplentes com bilhetes ameaçadores. No sertão, embora houvesse
compreensão com quem cometia homicídio, isto não acontecia no caso de roubo. Um
cangaceiro, ao prestar depoimento, se exasperou com o delegado de polícia, que o
acusou de roubo, disse-lhe que o chamasse de assassino, jamais de ladrão, pois
não havia furtado, havia tomado bens à mão armada, ou seja, o proprietário
estava presente e poderia ter defendido seus bens.
Na obra, Mello relata que Cristino
Gomes da Silva Cleto, vulgo Corisco, havia alertado Lampião que a Grota do
Angico em Poço Redondo (SE) cheirava a defunto, Lampião que gostava de acampar
ali, não lhe deu ouvidos, estava com excesso de confiança e abdicando de
maiores cuidados quanto à proteção. No de 28 de julho de 1938, tendo obtido
informações prévias da presença de Lampião e seu bando e, vindo do município de
Piranhas (AL) que o tenente João Bezerra da Silva (1919-1955) de posse de três
metralhadoras, encontraram o bando dormindo e fuzilaram-nos, sem que estes
conseguissem reagir. As cabeças de Lampião e de seus integrantes foram
decepadas e expostas na escadaria de prefeitura de Piranhas.
Corisco foi o único cangaceiro do
bando de Lampião a sobreviver, mas, tendo continuado a agir e a ameaçar a polícia
foi morto dois anos depois. Dadá, sua esposa, foi presa e depois de ganhar a
liberdade, refez sua vida, casou-se novamente e morreu em 1994. O ano de 1940,
marcou oficialmente o fim do cangaço. O cangaço custou vultosa fortuna para o
erário público de estados e da própria União. O enfrentamento definitivo do
cangaço somente foi possível, com acordos feitos entres os entes federativos da
União, afetados pela ação dos criminosos, no sentido de que diligências de um
estado pudesse adentrar o estado vizinho quando em perseguição aos cangaceiros,
frustrando manobra muitas vezes realizadas para escapar das volantes.
P.S. De forma alguma, essa resenha substitui o prazer e o conhecimento obtido com a leitura da obra!
Sugestão de boa leitura:
Título:
Guerreiros do Sol:
violência e banditismo no Nordeste.
Autor:
Frederico
Pernambucano de Mello.
Editora:
CEPE, 2023, 612 p.