Jeferson Tenório (1977) é um
escritor, professor e pesquisador brasileiro, radicado em Porto Alegre. Em
2021, recebeu o prêmio Jabuti referente à obra aqui resenhada e publicada no
ano anterior. Trata-se da maior honraria a uma publicação literária nacional. O
autor, então ganhou notoriedade e passou a ser chamado para entrevistas, no
entanto, tornou-se alvo de haters, sendo inclusive ameaçado de morte. Em 2022
(último ano do governo Bolsonaro), seu livro passou pela seleção do PNLD - Programa
Nacional do Livro Didático, escolhido que foi por uma equipe de analistas
professores a serviço do Ministério da Educação e da Cultura (MEC), para fazer
parte do acervo das bibliotecas de escolas públicas.
Recentemente, algumas vozes (conservadoras) se levantaram
e acusaram a obra de possuir vocabulário de baixo nível e de incitar à
promiscuidade. Não demorou e os governos de Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná,
de lideranças igualmente conservadoras, retiraram tal livro das bibliotecas.
Este escriba, apenas sabia que o referido livro denunciava o racismo estrutural
de nosso país, mas, diante da polêmica, resolveu adquiri-lo, para ler na
íntegra e não ser mais um a julgar sem verdadeiramente conhecer a obra. Após a
censura por parte do trio governamental, a venda do livro aumentou em 1400%. No
entanto, esse incremento de vendas é algo que perturba o próprio autor que
gostaria que o livro vendesse por si mesmo, não por reação a uma censura. Eu,
por meu turno, penso que, após tantas noites escuras que o fascismo trouxe para
a humanidade, reagir à censura de um livro, é combater com luz a escuridão
daqueles que propagam o medo e o ódio.
O livro de Jeferson Tenório faz a denúncia do racismo de
nossa sociedade, que se faz presente nas piadas, nos comentários em tom jocoso
sobre as pessoas negras, ou ainda, na desaprovação ou desconfiança contra estas,
etc. Relata de forma ficcional, ou nem tão ficcional assim, pois é difícil
saber na obra, o que é fruto da imaginação do autor, ou o que é dele
experiência vivida, que as pessoas que não possuem a pele negra, não conseguem,
por mais empatia que tenham, sentir a dor do racismo. O escritor insere no
papel de narrador, Pedro, um rapaz negro, estudante de arquitetura, filho de Henrique,
um professor de literatura de escola pública, também negro e de sua mãe,
Martha, uma mulher negra.
O narrador (Pedro) relata a relação familiar, de seus
pais e dele com estes. Pedro revisita os traumas de seus pais, contando a forma
como eles lidavam com o racismo numa Porto Alegre racista, algo, que é do
conhecimento de todos. Pedro relata as constantes abordagens policiais e o
tratamento diferenciado dado em desfavor das pessoas de pele negra. O livro
denuncia também a violência policial que vitima principalmente os jovens negros.
Na trama, seu pai Henrique, é morto numa abordagem policial. Lembro de ter
assistido pela TV, uma abordagem policial ocorrida nessa cidade, mas, poderia
ter ocorrido em qualquer lugar do Brasil, afinal o racismo não é exclusividade
de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul, na qual, uma vítima negra é presa enquanto
seu agressor branco escapa impune, apesar das pessoas que viram o fato,
alertarem os policiais sobre o engano, isso foi há cerca de um mês.
A pergunta que não
quer calar é, por que tal obra incomodou/incomoda tanto? Tendo lido a obra,
discordo que seja, pela tal linguagem de baixo nível, pois, a obra é muito bem
escrita, e prazerosa ao ler, embora pesada pelo tema retratado. Há algumas
poucas falas, se referindo aos órgãos genitais masculino e feminino de forma
vulgar, mas, sabemos que isso não é algo que faça corar nossos adolescentes e
jovens, pois também as utilizam. Além disso, utilizar essas poucas linhas para
caracterizar a obra como um todo, é algo próprio da indústria de fake news ou
de desinformação tão cara a alguns grupos políticos de nosso país. É importante
lembrar que, a pouco tempo, muitas falas de autoridades de nosso país, em
reuniões de governo ou em entrevistas, se fizeram com linguagem até mais chula.
Lembro ainda que alguns autores consagrados como Jorge Amado e Darcy Ribeiro
também incluíram expressões vulgares em obras suas, nem por isso foram
atacados. Seria um caso de "pau que bate em Chico não bate em
Francisco"?
A obra, em alguns momentos trata do tema da paixão e da sexualidade,
de forma coloquial, afinal, não se trata de uma aula formal de biologia, mas,
de literatura, sendo que ao literatos é concedida a liberdade para criar,
portanto, literatura e literatos não cabem na caixinha padrão que os moralistas
de plantão querem impor aos demais. O livro faz menção a forma erotizada como a
branquitude vê os corpos negros e, isso está relatado até mesmo em música,
lembro da marchinha de carnaval "Teu cabelo não nega" de Lamartine
Babo. Reitero, no entanto que o tema do livro, não é o sexo, afinal ele faz
parte do livro, como faz parte da vida, porém, de forma secundária. A
promiscuidade está na mente alienada daqueles que, ou não leram a obra, ou
foram incapazes de perceber que o tema central é o racismo estrutural e o
trauma que ele causa na vida das pessoas negras.
Penso que é uma hipocrisia esse ataque ao livro de
Jeferson Tenório, afinal, ele não é destinado à crianças, e sim aos estudantes
do Ensino Médio, os quais dispõem de celulares ligados à Internet, que lhes
foram presenteados por seus próprios pais, e, sabemos, na Internet há de tudo,
e nela o adolescente busca tudo aquilo que lhe desperta a curiosidade, e essa
nem sempre é relacionada à aula que teve hoje na escola. O livro faz menção aos
olhares de estranheza, perante intelectuais e empresários negros bem sucedidos afirmando
serem comuns, mas, não deveriam. Sobre isso, o saudoso intelectual Milton
Santos (1926 - 2001) assim se expressou "a chamada boa sociedade acredita
que está permanentemente reservado um lugar predeterminado, lá em baixo, para
os negros e assim tranquilamente se comporta". Milton Santos, afirmou
ainda, que é muito difícil ser um intelectual negro no Brasil. O racismo não é
algo exclusivo do Brasil e, na Europa, para citar um exemplo, torcedores nos
estádios entoam impunemente cânticos e provocações racistas contra jogadores
negros. A Europa dos finos europeus, não é tão evoluída socialmente, também não
somos. Lá a mente colonial, racista e xenófoba, cá a mente escravocrata que pariu
o preconceito, a ditadura e a censura para evitar que o menor arremedo de
justiça social aconteça nestas paragens, afinal, para que nada mude, é
necessário que se imponha o silêncio às vítimas.
P.S. Os governadores,
sabemos, quiseram jogar para a torcida. Perderam feio!
Sugestão
de boa leitura:
Título: O
avesso da pele.
Autor:
Jeferson Tenório.
Editora:
Companhia das Letras, 2020, 192 p.
Nenhum comentário:
Postar um comentário