Ler "Os Sertões" constitui um marco na vida de um
leitor entusiasta, afinal, trata-se de um grande clássico. O fato de tratar-se
de um calhamaço (700 páginas) e o cientificismo empregado no texto do livro
assusta muita gente, mas, não devia. É importante que se diga que inúmeras
vezes o leitor precisará recorrer ao dicionário, mas, que o esforço é
grandemente recompensado. Na época em que "Os Sertões" foi escrito, a
escrita rebuscada e a abundância de termos científicos eram comuns nas grandes
obras e, o engenheiro, militar, naturalista, jornalista, geógrafo, professor,
poeta, romancista, ensaísta e escritor Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha
(1866-1909) o redigiu durante cinco anos para ser um grande livro, sua
obra-prima e foi exitoso.
A obra é dividida em três partes: A terra, o homem e, a
luta. Na parte intitulada "A terra", Euclides da Cunha descreve e
explica minuciosamente os aspectos naturais da região, sua formação geológica e
geomorfológica. É importante que se diga que após 118 anos de sua publicação, o
conhecimento científico evoluiu e a obra se encontra defasada. Há também
críticos que afirmam que Euclides ousou demais e cometeu alguns deslizes
(erros) na abordagem científica. Digo que não há como ler "Os
Sertões" e não se assombrar com o gênio que o Brasil perdeu quando de sua
trágica morte aos 43 anos de idade. Na parte intitulada "O homem"
Euclides move seu olhar para o sertanejo, sua origem por meio da miscigenação e
sua forma de viver no sertão. Descreve o jagunço e o vaqueiro e cunha a frase
"o sertanejo é antes de tudo um forte". Faz isso sempre sem deixar de
ancorar o que observa in loco no
conhecimento antropológico e sociológico obtido por meio de suas leituras.
É na parte intitulada "A luta" que o escritor
vai dizer a que veio seu livro, ou seja, para denunciar o genocídio contra uma
multidão de excluídos levado a cabo pela República recém instaurada por meio do
Exército Brasileiro. É importante que se diga que Euclides foi militar e era
republicano, logo, opunha-se à restauração da Monarquia. E com esse espírito
ele acompanhou a quarta expedição militar à Canudos. Canudos era uma fazenda
abandonada na Bahia na região da caatinga e nela foi fundado o povoado de Monte
Belo pelo cearense Antonio Vicente Mendes Maciel vulgo "Antonio
Conselheiro" (1830 -1897). Antonio Conselheiro foi um asceta que
peregrinou pelo sertão pregando durante quase trinta anos, reformando e
construindo igrejas e açudes para a população pobre. Tinha uma fala mansa e
tratava a todos como irmãos e estes chamavam-no de pai. A forte religiosidade
da população sertaneja pobre levava-os a acreditar que ele era a reencarnação
de Jesus, embora, Conselheiro negasse ser. Na década de 1870 uma seca severa e
prolongada tornou a vida dos sertanejos ainda mais difícil. A elite local já
havia solicitado à Monarquia que se tomasse alguma providência contra
Conselheiro e, ele até foi preso, mas, nunca se encontrou nada contra ele,
apesar dos inúmeros boatos de assassinatos. A ascendência dele sobre a
população incomodava os coronéis (fazendeiros) da região.
O país havia passado por grandes transformações
históricas, houve o fim do ciclo da cana-de-açúcar, a libertação dos escravos
(1888) e, a consequente Proclamação da República (1889). A instauração da
República não trouxe mudanças para a população pobre, menos ainda, nos rincões
interioranos do Brasil. O país estava atrelado a uma grande e pesada dívida
externa, a moeda estava depreciada, o preço do café (nosso principal produto de
exportação) estava em queda e o governo republicano para fazer frente às
dificuldades financeiras aumentara os impostos, no entanto, o sertanejo
continuava tão abandonado quanto na época da Monarquia, porém, agora lhe eram
cobrados pesados impostos. Os fazendeiros, se irritavam com Antonio Conselheiro,
pois, os sertanejos o seguiram e com ele fundaram Monte Belo (1893), não mais
trabalhando em troca de quase nada para os coronéis. Em Monte Belo (Canudos)
construíram 5200 casebres e estavam construindo uma grande e nova igreja. Trabalhavam
nas terras e produziam alimentos que eram divididos entre todos. Produziam
farinha de mandioca, feijão, milho, batata, cana de açúcar, carne de sol
(cabras), leite e queijo de cabra. Não era muito, mas, para muitos era mais do
que tiveram a vida toda.
Antonio Conselheiro adquiriu madeiras para a igreja nova
e pagou à vista, o comerciante que não gostava de Conselheiro recebeu, mas,
resolveu não entregar a madeira. Antonio Conselheiro avisou que levaria sua
gente e traria a madeira à força para Canudos. O comerciante procurou
autoridades locais e estas solicitaram ajuda do Governo Federal. No primeiro
embate, houveram pesadas mortes no lado de Conselheiro e poucas das tropas
oficiais (a madeira não foi entregue). Como os coronéis não suportavam mais
Antônio Conselheiro juntamente com as autoridades locais ampliaram as falas de
Conselheiro que considerava a chegada da República como se fosse a do próprio
Anti-Cristo e "pintaram em seu grupo as cores" de um movimento com
ramificações internacionais para a restauração da Monarquia (algo que
absolutamente não existia). Por sua vez, a República queria dar uma demonstração
de força e Canudos seria o exemplo para todo o país. Conselheiro e sua gente
que nada recebiam em troca do Governo Federal, apenas, não queriam pagar
impostos, pois, o povoado estava progredindo e até exportando couro.
Estimulado pelas autoridades e pela elite baiana e,
também pela classe média brasileira que exigia a asfixia do movimento tido por
ela como monarquista, o governo preparou três expedições contra Canudos que
foram humilhantemente rechaçadas pelos sertanejos que, embora mal armados,
conheciam como ninguém o terreno e tinham ânimos invencíveis, pois, lutavam
pelo Conselheiro a quem tinham como o próprio "Bom Jesus" e pela vida
que, apesar de simples, nunca fora tão boa. O Governo Federal preparou uma mega
expedição com tropas de vários estados brasileiros e levou o que havia de
melhor em armamentos (canhões, carabinas, metralhadoras, fuzis, granadas,
dinamite, etc.). Após uma campanha que se mostrou mais demorada e difícil do
que se esperava, "Canudos que não se rendeu e que não foi vencida, foi
extinta". À exceção de mulheres, crianças e velhos inválidos, todos os
prisioneiros eram interrogados e degolados pelo Exército. Os mortos foram contados
em cinco mil militares e vinte mil canudenses. O arraial foi reduzido à pó e a
guerra só acabou a 05/10/1897 com a morte simultânea dos últimos quatro combatentes que de uma vala em meio a cadáveres repeliam o fogo de um
destacamento inteiro de soldados. O palco da guerra retratado em fotografia
mostrava a destruição das construções, cadáveres mutilados para todo lado e as
duas igrejas destruídas encontra-se hoje sob 18 metros de água do reservatório
de Cocorobó, que poderia ter sido construído a jusante de forma a evitar a
inundação das ruínas do arraial (escolha infeliz se, não premeditada).
Conselheiro que havia morrido cerca de duas semanas antes, teve seu corpo
exumado, fotografado e sua cabeça cortada e levada para a capital. Foi um
genocídio (mais um na conta do Exército Brasileiro) e Euclides fez questão de denunciá-lo.
Fez bem e, de forma magistral!
Sugestão de boa leitura:
Título: Os
sertões.
Autor:
Euclides da Cunha.
Editora: Ubu
Editora/SESC, 2016, 700 p.
Preço:
R$178,50 (versão com fortuna crítica) - há versões mais baratas.
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