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sábado, 31 de outubro de 2020

O Prêmio Nobel, o Brasil e os brasileiros

                 Alfred Nobel (1833-1896) foi um químico, engenheiro civil e inventor sueco que fez grande fortuna com a invenção da dinamite. Nobel, muito dedicado aos estudos e às pesquisas científicas registrou várias patentes e acabou não tendo tempo para a vida pessoal, dessa forma, não constituiu família. Tinha na escritora, pacifista e compositora Bertha Kinsky (1843-1914) integrante da nobreza do Império Austro-Húngaro sua grande amiga. Bertha com seus ideais pacifistas exerceu grande influência sobre Alfred Nobel. O inventor sueco ao falecer deixou grande parte de sua fortuna para que se criasse uma fundação cujos recursos deveriam ser utilizados para premiar anualmente pessoas (vivas) de qualquer nacionalidade que se destacassem no desenvolvimento de avanços que trouxessem grandes benefícios para a humanidade.

            A "The Nobel Foundation" foi criada em 1901, ano em que começaram a ser concedidos os prêmios nas categorias de Química, Física, Literatura, Medicina e Paz. Algum tempo depois foi incluído o prêmio de Economia, porém, os recursos financeiros para este último prêmio são oriundos de um banco sueco. Cada categoria tem seu comitê próprio que avalia as indicações de professores, cientistas e acadêmicos de todo o mundo. A Academia Real de Ciências da Suécia é responsável pelos prêmios de física, química e economia. O prêmio de literatura fica sob a avaliação da Academia Sueca de Letras. O Instituto Médico-Cirúrgico de Karolinska (Solna - Suécia) é responsável pelo prêmio de medicina. O prêmio Nobel da Paz (a pedido de Alfred Nobel em testamento) é escolhido pelo Parlamento Norueguês. Nobel pretendia solidificar os frágeis laços de amizade entre a Suécia e a vizinha Noruega. Os vencedores do prêmio são anunciados em outubro de cada ano e, na data de 10 de dezembro (aniversário de Alfred Nobel) ocorre a cerimônia de entrega do prêmio que inclui uma medalha maciça de ouro com a efígie do inventor, um diploma Nobel e cerca de 1,3 milhões de dólares estadunidenses. O prêmio confere ao seu ganhador reconhecimento internacional. O prêmio pode ser concedido a no máximo três pessoas no caso de um trabalho conjunto.

            O Brasil já teve vários candidatos ao prêmio Nobel em diferentes categorias, apenas, para citar alguns: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e Érico Veríssimo (1905-1975) na literatura. Na Medicina: Carlos Chagas, Vital Brasil, Osvaldo Cruz, Euryclides de Jesus Zerbini e Ivo Pitanguy. Oswaldo Aranha, Josué de Castro, Dom Paulo Evaristo Arns, Herbert José de Souza "Betinho", D. Helder Câmara. O prêmio Nobel é uma honraria jamais conquistada por um brasileiro. A nossa vizinha Argentina já recebeu cinco, o México 3, o Chile, a Colômbia e a Guatemala 2 cada e a Venezuela 1. Há países diminutos pelo mundo que já foram agraciados com o prêmio. É verdade que países que investem mais em pesquisa científica receberam mais premiações nas categorias de física, química e medicina, mas, há exceções. Espanta nunca termos vencido nas categorias de literatura ou da paz sendo que tivemos tantos nomes formidáveis por suas ações e obras.

            O brasileiro Ozíres Silva, ex-ministro de Estado, fundador da Embraer, ex-presidente da Petrobras e da extinta Varig em uma cerimônia em Estocolmo (Suécia) fez a membros do Comitê do prêmio Nobel a pergunta que todo brasileiro bem formado e informado gostaria: Por que o Brasil nunca ganhou um prêmio Nobel? Após hesitar, um dos membros respondeu: "vocês brasileiros são destruidores de heróis. Todos os candidatos brasileiros que apareceram (contrariamente a outros países, em particular, os Estados Unidos da América) todo mundo joga pedra do Brasil. Não tem apoio da população. Parece que o brasileiro desconfia do outro ou tem ciúmes do outro, sei lá o que acontece". Faz sentido, lembro de ter lido que a Fundação Nobel deseja que o prêmio concedido à alguém seja extensivo ao povo de seu país e que a acirrada polaridade aqui existente atrapalha muito a escolha de alguém daqui.Lembro que o sociólogo Betinho que criou a "Ação Cidadania contra a fome e a miséria" era criticado por sua ligação com o Partido dos Trabalhadores. D. Paulo Evaristo Arns era criticado pela direita por se opor fortemente à ditadura militar (1964-1985) e por seu papel determinante no esclarecimento dos crimes perpetrados pelos militares. Quanto a D. Helder Câmara pode-se sintetizar em sua célebre frase: "Se dou pão aos pobres. todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não tem pão, me chamam de comunista e subversivo".

            O país está rachado e não é por culpa de Lula e/ou Bolsonaro. O que temos aqui é a própria luta (tensão) de classes que existia antes deles e continuará existindo depois. A polaridade existente não é fruto da idolatria, mas, oriunda das raízes colonizatórias. Afinal, esse país foi construído com as marcas do saque, do estupro, da escravidão, da grilagem de terras, da tortura e dos privilégios imorais. A riqueza (recursos naturais) é finita, grande é a miséria e a fome e, infinita a ganância e a ignorância das nossas elites. Enquanto houver essa extrema desigualdade social haverá gritos, se não os dos poderosos ao infligir a violência (nas suas múltiplas formas), os dos excluídos que passam fome e/ou que clamam por justiça. O Nobel fica para depois! 


 

            

sábado, 24 de outubro de 2020

A letra escarlate


 Nathaniel Hawthorne (1804-1864) é considerado um dos maiores escritores dos Estados Unidos da América. Oriundo de uma família puritana, era bisneto de um dos juízes do célebre e vergonhoso julgamento das bruxas de Salem. O autor ficou conhecido por meio de suas obras como sendo o puritano mais anti-puritano da história, isso porque suas obras em que pese a crítica contra o puritanismo histórico é dotada de grande pudor  e tem a moral como tema recorrente na qual considera ser a salvaguarda contra a crueldade humana. O escritor teve vários amigos ilustres, tais como o presidente Franklin Pierce (1804-1869) e os escritores Ralph Waldo Emerson (1803-1882), Henry David Thoreau (1817-1862) e Herman Melville (1819-1891) entre outros. Em 1842 casou-se com Sophia Peabody (1809-1871) com quem teve três filhos. Em 1845, voltou com a família para Salem onde trabalhou como Inspetor da Alfândega. Em 1849, a oposição vence a eleição presidencial e ele é demitido do cargo passando a dedicar-se exclusivamente à escrita, na qual sabia ter grande talento e queria ser reconhecido por ela. No ano seguinte lança "A letra escarlate", obra com a qual pretendia ganhar fama e dinheiro. A primeira edição esgotou-se rapidamente, mas, embora tenha ganho dinheiro e fama, em vida, estes não alcançaram a dimensão que projetara.

            "A letra escarlate", sua obra-prima é considerada por seu autor como um romance psicológico. A narrativa embora tenha traços históricos não pode ser classificada como romance histórico devido não ser fruto de profunda pesquisa embasada em métodos científicos, porém, de igual forma não pode ser considerada meramente ficcional, pois, contém traços históricos e autobiográficos. A obra se inicia com um conto intitulado "A alfândega" onde o escritor narra sua rotina de trabalho e descreve a personalidade de alguns de seus subordinados. O autor utiliza esse conto para levar ao conhecimento de seus leitores o surgimento da ideia da obra que teria sido quando em uma faxina encontrou um pacote com um pano com uma letra escarlate bordada junto a alguns documentos muito antigos. Após realizar uma pesquisa sobre o achado, resolveu escrever um livro para trazer sua história à luz do sol.

            Trata-se de uma obra escrita no século XIX que narra uma história do século XVII, na qual Hester Pryne, uma jovem casada com Roger Pryne, um médico culto, porém, muito mais velho. Roger Pryne enviou sua esposa antecipadamente para a Nova Inglaterra (embrião do futuro Estados Unidos da América) para adquirir moradia a fim de que ambos lá se instalassem enquanto ele resolvia assuntos pendentes na Inglaterra. Ela vem sozinha no navio e, sua forma de ser choca a sociedade puritana ali instalada. Jovem e linda traja roupas bonitas e luxuosas, culta e sem embaraços se permite discordar de opiniões masculinas. Ela mesma dirige sua charrete e monta a cavalo. Faz negócios com os comerciantes locais sem precisar de um intermediário do sexo masculino. Contrariando as lideranças do povoado, adquire uma casa em local lindo, porém ermo e vai morar sozinha (enquanto espera o marido). Sozinha e armada, repele as investidas masculinas.

             Passam-se alguns anos e o marido não chega. É dado como morto em um ataque indígena ao chegar na colônia inglesa. Viúva, escandaliza a sociedade puritana local, pois, não consegue esconder os primeiros sinais de gravidez e recusa-se a contar a identidade do homem com quem se relacionou. Mesmo sem julgamento é presa, porém, nem assim revela o nome do pai da criança que  nasce na prisão com o auxílio de uma parteira. Levada a julgamento cuja pena padrão para adultério era o enforcamento de ambos, pois, uma vez que o corpo não havia sido encontrado, ela somente poderia desposar outro homem após sete anos de seu desaparecimento (sexo antes do casamento era algo que ninguém deveria cogitar). As autoridades diante da negativa de Hester em revelar seu parceiro nem mesmo com a súplica de seu pastor Arthur Dimmesdalle, não consideram de bom tom enforcá-la sabendo que o homem com quem ela cometeu um pecado mortal permanecerá vivo e convivendo na sociedade. Resolvem, então lhe impor uma marca, uma letra "A" escarlate (adúltera)  que ela será obrigada a usar sempre que adentrar espaços públicos. No dia do julgamento aparece na localidade um médico que se apresenta como Roger Chillingworth. É na verdade, Roger Pryne, marido de Hester que deseja se vingar do homem com quem ela se relacionou e diz a ela que o encontrará apesar de seu silêncio.

            Chillingworth vive cada dia na busca da vingança. Hester é humilhada publicamente a cada ida ao povoado, todos dela se afastam e por onde passa ouve xingamentos. Resiliente, seu castigo a torna mais forte e consegue manter a moral elevada ante puritanos hipócritas que falam sobre Deus enquanto destilam ódio. Costureira de mão cheia atende a sociedade local com as lindas roupas que costura e borda. Faz roupas maravilhosas para a filha Pearl, porém, usa roupas excessivamente sóbrias (sempre no tom cinza escuro) evidenciando que vive apenas para a filha. Vive o dilema de não conseguir se arrepender, pois, arrepender-se é rejeitar a filha (o fruto de seu pecado) que ama. Do dinheiro que ganha, tira o suficiente para viver com modéstia, porém, dignamente e, pratica muita caridade, apesar de  muitas das pessoas que ajuda lhe retribuir com xingamentos. Algumas pessoas começam a sentir compaixão por Hester, porém,  ela recusa que dirijam-se a ela na rua, pois, quer viver sua pena de exclusão (em meio à sociedade). Roger Chillingworth explorando o fanatismo religioso de seus membros inflama o ódio na sociedade no intuito de ver sua ex-mulher e amante serem levados à forca.

            A obra foi adaptada para a telona, porém, a adaptação não é fiel à obra escrita, algo comum, pois, para fazer sucesso na mídia cinema há tempero próprio. A escrita do autor conta com poucos diálogos e um detalhismo muito grande na descrição de cenários e perfis das personagens, mas, trata-se de uma grande obra! Fica a dica para a leitura e para o filme!

P.S. No livro e no filme, o pai da criança é revelado bem antes do final. Não foi para evitar spoiler que eu não contei, foi por ruindade mesmo! Será que cometi pecado com isso?

Sugestão de boa leitura:

Título: A letra escarlate.

Autor: Nathaniel Hawthorne.

Editora: Penguin, 2011, 336 p.

Preço: R$26,89.

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Os sofrimentos do jovem Werther

 

            "Os sofrimentos do jovem Werther" é o romance que lançou o polímata, escritor e estadista Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) do Sacro Império Romano-Germânico (o Estado Alemão moderno somente se constituiria em 1871) à fama. Goethe é um dos maiores nomes da literatura alemã e do Romantismo europeu. O livro de Goethe é considerado um precursor do Romantismo Literário que surgiria mais tarde, porém, Goethe, na maturidade, expressava um certo desdém por seu livro da juventude, não dando a ele o valor que lhe foi atribuído. Sua obra-prima é "Fausto", livro em que trabalhou praticamente a vida toda. Sua vasta obra é formada por romances, peças de teatro, poemas, artigos autobiográficos e reflexões teóricas sobre arte, literatura e ciências naturais. Goethe nasceu em uma família abastada, seu pai (Johann Casper Goethe) um jurista culto, jamais advogou, pois, vivia dos rendimentos de heranças recebidas por ele e sua esposa (Catharina Elisabeth Textor Goethe). O escritor alemão recebeu uma sólida educação, aprendeu francês, inglês, italiano, latim, grego e os rudimentos de ciências, religião e desenho, além disso, praticou aulas de violoncelo e piano e também dança e equitação. Jovem, estudou no curso de Direito na Universidade de Leipzig, formou-se e trabalhou na área, mas, sem jamais se empolgar. Goethe tinha ligações de amizade com a família real e frequentava o palácio e, dessa forma também trabalhou em cargos públicos.

            O livro "Os sofrimentos do jovem Werther" foi publicado originalmente em 1774 e tornou-se sucesso instantâneo em toda a Europa. O Imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) condecorou Goethe e disse-lhe que lera sete vezes a obra que levava sempre nas batalhas. A obra foi muito criticada por setores religiosos da sociedade que a consideravam uma má influência entre os jovens, pois, trazia uma narrativa de cobiça à uma mulher casada e a discussão acerca do sentido da vida e do suicídio. Jamais houve a comprovação, mas, credita-se à referida obra o suicídio de vários jovens. Trata-se de um romance epistolar, ou seja, sua narrativa é construída mediante cartas trocadas durante os anos de 1771 e 1772 entre o narrador e protagonista Werther com seu amigo Wilhelm que faz as vezes de confidente e também com Charlotte e seu noivo Albert. Na trama contada em primeira pessoa pelo narrador e protagonista Werther (um rapaz muito jovem e romântico) se desloca até uma pequena cidade do interior da Alemanha para resolver uma questão referente a uma herança. Na localidade é apresentado por sua prima a uma jovem chamada Charlotte, a qual tira para dançar e, apesar de ter sido avisado pela prima de que se tratava de uma moça comprometida, tem por ela uma paixão avassaladora. A jovem muito linda e gentil, talvez percebendo os seus sentimentos, informa-o que é compromissada. Werther conhece Albert, o noivo de Charlotte e dele se torna amigo. Para a infelicidade de Werther, Charlotte se casa com Albert. Apesar disso, Werther continua se correspondendo e visitando o casal. Nas cartas endereçadas a Wilhelm ele conta que a moça é a própria perfeição (bela e gentil) e que em certa oportunidade enviou um empregado para a casa de Charlotte para avisar-lhe que estava com visitas e não poderia ir lhe visitar e que no retorno do funcionário sentiu vontade de o abraçar e beijar-lhe o rosto que foi por ela olhado. Em outra oportunidade Werther aproveitando-se da ausência de Albert beija à força Charlotte. Charlotte irrita-se com ele e ele promete não mais voltar. Paro aqui para não dar spoiler!

            É importante que se diga que a personagem Werther é o próprio Goethe quando jovem que também se apaixonou por uma mulher casada, razão pela qual se afastou do casal, porém, mantendo a amizade. O rompimento da amizade ocorreu quando da publicação do livro, pois, o casal ficou revoltado com a atitude de Goethe que inclusive manteve o nome verdadeiro da amada na obra, mudando apenas o do marido. O amigo confidente (Wilhelm) é provavelmente o seu editor. A narrativa também é influenciada pela história de vida de Jerusalém, um amigo de Goethe.

P.S. Esta leitura pode perturbar pessoas sensíveis ou que não estejam em bom momento psicológico!

Sugestão de boa leitura:

Título: Os sofrimentos do jovem Werther.

Autor: Johann Wolfgang von Goethe.

Editora: Estação Liberdade, 1999, 200 p.

Preço: R$ 28,00.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Os sertões

 

     

            Ler "Os  Sertões" constitui um marco na vida de um leitor entusiasta, afinal, trata-se de um grande clássico. O fato de tratar-se de um calhamaço (700 páginas) e o cientificismo empregado no texto do livro assusta muita gente, mas, não devia. É importante que se diga que inúmeras vezes o leitor precisará recorrer ao dicionário, mas, que o esforço é grandemente recompensado. Na época em que "Os Sertões" foi escrito, a escrita rebuscada e a abundância de termos científicos eram comuns nas grandes obras e, o engenheiro, militar, naturalista, jornalista, geógrafo, professor, poeta, romancista, ensaísta e escritor Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-1909) o redigiu durante cinco anos para ser um grande livro, sua obra-prima e foi exitoso.

            A obra é dividida em três partes: A terra, o homem e, a luta. Na parte intitulada "A terra", Euclides da Cunha descreve e explica minuciosamente os aspectos naturais da região, sua formação geológica e geomorfológica. É importante que se diga que após 118 anos de sua publicação, o conhecimento científico evoluiu e a obra se encontra defasada. Há também críticos que afirmam que Euclides ousou demais e cometeu alguns deslizes (erros) na abordagem científica. Digo que não há como ler "Os Sertões" e não se assombrar com o gênio que o Brasil perdeu quando de sua trágica morte aos 43 anos de idade. Na parte intitulada "O homem" Euclides move seu olhar para o sertanejo, sua origem por meio da miscigenação e sua forma de viver no sertão. Descreve o jagunço e o vaqueiro e cunha a frase "o sertanejo é antes de tudo um forte". Faz isso sempre sem deixar de ancorar o que observa in loco no conhecimento antropológico e sociológico obtido por meio de suas leituras.

            É na parte intitulada "A luta" que o escritor vai dizer a que veio seu livro, ou seja, para denunciar o genocídio contra uma multidão de excluídos levado a cabo pela República recém instaurada por meio do Exército Brasileiro. É importante que se diga que Euclides foi militar e era republicano, logo, opunha-se à restauração da Monarquia. E com esse espírito ele acompanhou a quarta expedição militar à Canudos. Canudos era uma fazenda abandonada na Bahia na região da caatinga e nela foi fundado o povoado de Monte Belo pelo cearense Antonio Vicente Mendes Maciel vulgo "Antonio Conselheiro" (1830 -1897). Antonio Conselheiro foi um asceta que peregrinou pelo sertão pregando durante quase trinta anos, reformando e construindo igrejas e açudes para a população pobre. Tinha uma fala mansa e tratava a todos como irmãos e estes chamavam-no de pai. A forte religiosidade da população sertaneja pobre levava-os a acreditar que ele era a reencarnação de Jesus, embora, Conselheiro negasse ser. Na década de 1870 uma seca severa e prolongada tornou a vida dos sertanejos ainda mais difícil. A elite local já havia solicitado à Monarquia que se tomasse alguma providência contra Conselheiro e, ele até foi preso, mas, nunca se encontrou nada contra ele, apesar dos inúmeros boatos de assassinatos. A ascendência dele sobre a população incomodava os coronéis (fazendeiros) da região.

            O país havia passado por grandes transformações históricas, houve o fim do ciclo da cana-de-açúcar, a libertação dos escravos (1888) e, a consequente Proclamação da República (1889). A instauração da República não trouxe mudanças para a população pobre, menos ainda, nos rincões interioranos do Brasil. O país estava atrelado a uma grande e pesada dívida externa, a moeda estava depreciada, o preço do café (nosso principal produto de exportação) estava em queda e o governo republicano para fazer frente às dificuldades financeiras aumentara os impostos, no entanto, o sertanejo continuava tão abandonado quanto na época da Monarquia, porém, agora lhe eram cobrados pesados impostos. Os fazendeiros, se irritavam com Antonio Conselheiro, pois, os sertanejos o seguiram e com ele fundaram Monte Belo (1893), não mais trabalhando em troca de quase nada para os coronéis. Em Monte Belo (Canudos) construíram 5200 casebres e estavam construindo uma grande e nova igreja. Trabalhavam nas terras e produziam alimentos que eram divididos entre todos. Produziam farinha de mandioca, feijão, milho, batata, cana de açúcar, carne de sol (cabras), leite e queijo de cabra. Não era muito, mas, para muitos era mais do que tiveram a vida toda.

            Antonio Conselheiro adquiriu madeiras para a igreja nova e pagou à vista, o comerciante que não gostava de Conselheiro recebeu, mas, resolveu não entregar a madeira. Antonio Conselheiro avisou que levaria sua gente e traria a madeira à força para Canudos. O comerciante procurou autoridades locais e estas solicitaram ajuda do Governo Federal. No primeiro embate, houveram pesadas mortes no lado de Conselheiro e poucas das tropas oficiais (a madeira não foi entregue). Como os coronéis não suportavam mais Antônio Conselheiro juntamente com as autoridades locais ampliaram as falas de Conselheiro que considerava a chegada da República como se fosse a do próprio Anti-Cristo e "pintaram em seu grupo as cores" de um movimento com ramificações internacionais para a restauração da Monarquia (algo que absolutamente não existia). Por sua vez, a República queria dar uma demonstração de força e Canudos seria o exemplo para todo o país. Conselheiro e sua gente que nada recebiam em troca do Governo Federal, apenas, não queriam pagar impostos, pois, o povoado estava progredindo e até exportando couro.

            Estimulado pelas autoridades e pela elite baiana e, também pela classe média brasileira que exigia a asfixia do movimento tido por ela como monarquista, o governo preparou três expedições contra Canudos que foram humilhantemente rechaçadas pelos sertanejos que, embora mal armados, conheciam como ninguém o terreno e tinham ânimos invencíveis, pois, lutavam pelo Conselheiro a quem tinham como o próprio "Bom Jesus" e pela vida que, apesar de simples, nunca fora tão boa. O Governo Federal preparou uma mega expedição com tropas de vários estados brasileiros e levou o que havia de melhor em armamentos (canhões, carabinas, metralhadoras, fuzis, granadas, dinamite, etc.). Após uma campanha que se mostrou mais demorada e difícil do que se esperava, "Canudos que não se rendeu e que não foi vencida, foi extinta". À exceção de mulheres, crianças e velhos inválidos, todos os prisioneiros eram interrogados e degolados pelo Exército. Os mortos foram contados em cinco mil militares e vinte mil canudenses. O arraial foi reduzido à pó e a guerra só acabou a 05/10/1897 com a morte simultânea dos últimos quatro combatentes que de uma vala em meio a cadáveres repeliam o fogo de um destacamento inteiro de soldados. O palco da guerra retratado em fotografia mostrava a destruição das construções, cadáveres mutilados para todo lado e as duas igrejas destruídas encontra-se hoje sob 18 metros de água do reservatório de Cocorobó, que poderia ter sido construído a jusante de forma a evitar a inundação das ruínas do arraial (escolha infeliz se, não premeditada). Conselheiro que havia morrido cerca de duas semanas antes, teve seu corpo exumado, fotografado e sua cabeça cortada e levada para a capital. Foi um genocídio (mais um na conta do Exército Brasileiro) e Euclides fez questão de denunciá-lo. Fez bem e, de forma magistral!

 

 

Sugestão de boa leitura:

Título: Os sertões.

Autor: Euclides da Cunha.

Editora: Ubu Editora/SESC, 2016, 700 p.

Preço: R$178,50 (versão com fortuna crítica) - há versões mais baratas.

sábado, 3 de outubro de 2020

A necessidade dos serviços públicos e o ódio ao servidor

         

            O Brasil é um dos países mais injustos do mundo. O índice de Gini utilizado para comparar a desigualdade social nos coloca na vergonhosa 7ª colocação atrás apenas de seis países africanos. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) também não é motivo de orgulho, muito pelo contrário, somos o 79º melhor país em qualidade de vida. Tendo em vista que estamos num país que é a 9ª economia do mundo, algo obviamente está errado e, há muito tempo. E se a condução da economia nacional historicamente produziu esse gigante com pés de barro, obviamente, não pode ser obra do acaso, mas, de um projeto. É um grande erro dizer que o país nunca vai dar certo, para uma minoria ele sempre deu certo. Falo dos bilionários que aumentaram em número e capital durante a pandemia, sem que haja críticas contundentes da sociedade para tal fato, como há (e sempre há) quando uma categoria de trabalhadores luta (por meio de greve) na manutenção de seus direitos e pela reposição de salários defasados visando garantir sua mera sobrevivência de forma digna. Sobre isso, Simone de Beauvoir (1908-1986) já alertava: "o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". O trabalhador alienado é algoz de seu semelhante e, por consequência de si mesmo.

             Em um país com tamanha desigualdade social, a oferta de serviços públicos é vital para a sobrevivência da população pobre (trabalhadora). Sim, se você é trabalhador assalariado, você é pobre. No entanto, surrealmente vemos pessoas trabalhadoras, portanto, pobres (é importante repetir) que sem dinheiro para pagar, pregam a total privatização dos serviços públicos. Que os ricos desejem o Estado Mínimo é compreensível, não lhes falta dinheiro para pagar por tais serviços e, também vêm na privatização dos serviços públicos uma grande possibilidade de ganhar dinheiro, ofertando-os, mas, você que é trabalhador (pobre) não poderá pagar por eles, quer um exemplo? Quanto custa um tratamento prolongado em UTI? E uma cirurgia cardíaca? (É bom ter SUS). Precisa melhorar, mas, é bom ter! E quanto custa para formar o filho em um curso de medicina numa universidade privada? (É bom ter universidades públicas). Precisa melhorar o acesso da classe trabalhadora a esses cursos, mas, é bom ter!

            Nessa sociedade onde indivíduos sem terras defendem latifundiários, pobres votam em milionários para legislar sobre o destino do país (e de suas vidas) e criticam raivosamente quem tem consciência de classe chamando-os de comunistas, como se chamar alguém de comunista constituísse ofensa, quando na verdade é elogio, inclusive, esse escriba acha graça quando assim o chamam, porém, (dotado de honestidade intelectual) sabe não merecer, mas, que envaidece, envaidece. Dentre os trabalhadores (pobres) que defendem a total privatização dos serviços públicos, há os que fazem por seu estado de alienação e, outros por nutrir profundo ódio ao funcionalismo público. Há quem pense que todos os funcionários públicos recebem super-salários, quando muitos sequer recebem o salário mínimo regional. Os super-salários estão reservados a magistrados, políticos e seus assessores em cargos comissionados. A precarização das condições de trabalho (salarial, inclusive) do servidor público não resultará em melhoria do serviço público e, tampouco, a oferta por agentes não concursados resultaria.

            Existem políticos e não são poucos que gostariam que os servidores públicos não fossem concursados, pois, assim poderiam fazer das repartições públicas seu curral eleitoral e nelas alocar os apoiadores de campanha. Cada novo governante, trocaria os servidores, em prejuízo para a população, mas, em benefício dos bajuladores (apadrinhados políticos). Um trabalhador concursado teve méritos (a tão defendida meritocracia dos liberais) ao passar no concurso público (aberto a todos), o bajulador, não. Um servidor concursado pode se negar a fazer algo ilegal, o bajulador, sob medo de perder seu ganha-pão, faz. Quanto a muitos serviços que foram privatizados, basta lembrar que muitos investimentos estrangeiros em plantas industriais estão evitando o Brasil devido ao alto custo da energia elétrica, das telecomunicações e dos transportes e que na Europa, muitas privatizações estão sendo desfeitas devido a má qualidade dos serviços prestados. Digo ainda que um estado de bem-estar social (social democracia) tal como proposto na Constituição Federal de 1988 não é comunismo, aliás, comunismo no Brasil é como a lenda do bicho-papão, porém, usado para causar medo em adultos que não amadureceram.