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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Quarto de despejo



           
A Igreja Católica foi para mim a escola que não tive, pois, quando estudante, o país vivia a ditadura militar (1964-1985), e, o ensino ministrado era totalmente acrítico. Os mestres tinham receio de possíveis denúncias, afinal, nunca faltaram sátrapas. Desobedecer a ordens dos generais era incorrer em grave perigo ou de no mínimo, ter sérios aborrecimentos. Foi ao participar de grupos de jovens da Pastoral da Juventude que tive a formação teórica acerca das mazelas de nosso país, obviamente, isso ocorreu em fins do período ditatorial e início do período democrático, mas, contribuiu para sanar em parte minha formação até então deficitária, afinal, educar é tirar vendas e não tapar os olhos dos estudantes para algo que alguém não quer que seja visualizado. Foi assim que tomei conhecimento teórico acerca da concentração da terra em poucas mãos (não raro, fruto da grilagem) e da violência no campo, da situação da classe trabalhadora espoliada e também da população privada da dignidade humana, as pessoas que viviam/vivem com insegurança alimentar, subnutridas e que habitavam barracos ou moravam nas ruas. Até hoje tenho o sentimento que aquele trabalho desenvolvido com a juventude foi o mais próximo que a Igreja esteve dos ensinamentos de Jesus Cristo, afinal, ao lado de quem estaria Jesus se hoje estivesse na Terra?
            Não consigo precisar a data, porém, acredito que entre fins dos anos 1980 ou início dos anos 1990, a Prefeitura Municipal de Laranjeiras do Sul conseguiu recursos para um projeto de moradia popular e contatou a Igreja Católica, que por meio da juventude (grupos de jovens) contribuiu cadastrando as pessoas que seriam candidatas a receber moradias em alvenaria. Com um formulário que nos foi entregue, íamos em duplas, visitando cada barraco. Estes eram feitos de lâmina de madeira, lonas, tábuas com grandes frestas entre elas e piso de chão batido. Vi crianças magras com barrigas salientes, provavelmente, acometidas de verminose. Vi um menino soltando uma lombriga (áscaris lumbricóides) pela boca. Encontrei uma senhora que pegava água no pequeno rio (arroio dos Padres) à jusante de uma patente (sanitário improvisado) instalada sobre a água do riacho e perguntei-lhe o que iria fazer com a água, falou-me que iria preparar o almoço. Nada falei, não havia alternativa, a Sanepar ainda não havia levado água tratada até a localidade. Entramos num barraco que tal como os demais era pobre, mas, muito limpo, pertencente a uma mulher muito jovem. Iniciei a entrevista, nome; idade: 18 anos; casada; do lar; nível de instrução, etc. nome do marido; idade: 25; profissão: calceteiro a serviço da Prefeitura Municipal. Perguntei se tinham filhos, dois, idade das crianças, quatros anos e oito anos, automaticamente fiz a conta (18-8=10) e assustei-me. Contou-nos que eram primos e que não queriam ter mais filhos. Perguntei-lhe e ela disse que estava tomando anticoncepcional. Os dois meninos chegaram quando estávamos saindo, estavam limpinhos, roupas simples, mas, bem cuidados. Despedimo-nos. Nunca me esqueci dessa entrevista e da oportunidade que tive de conhecer esse lugar de toda a pobreza a denunciar a injusta sociedade que construímos. O projeto foi levado a cabo, centenas de casas foram construídas (bairro Paz Nascente), mas, não foi suficiente. Muitas famílias não receberam casas. A água tratada chegou. Depois veio até uma vaca mecânica para ajudar no combate à subnutrição infantil.
            Feita essa contextualização, cito o livro de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que acabei de ler. Carolina, solteira, mãe de três crianças narra em primeira pessoa, as angústias da vida de sua família e das pessoas que tal como ela habitavam a favela do Canindé em São Paulo/SP. A insegurança alimentar, os dias não raros em que teve de comunicar aos filhos que não haveria almoço, a felicidade das crianças quando havia uma refeição minimamente decente. As mortes (fome, doenças, violência) na favela. A violência dos maridos contra suas esposas. A dificuldade que tinha em conseguir dinheiro para o alimento do dia, para o que vendia ferro, papel, etc. que encontrava nas ruas. Carolina adorava ler e escrevia seu diário pensando em torná-lo livro de sucesso que retiraria sua família da favela. Mandou os originais para ser publicado na revista Seleções do Readers Digest, porém, para a sua decepção, lhes foram devolvidos por não haver interesse na publicação. Até o dia em que o jornalista Audálio Dantas a descobre, lê seu diário e o publica na Folha da Noite e na Revista O Cruzeiro. Em seguida, o livro é publicado (1960) e traduzido para treze idiomas. Carolina consegue sair da favela com a venda do livro, mas, nunca deixa a pobreza, apesar de publicar outras obras. Trata-se de uma obra de literatura-realidade. Nela Carolina, mostra as mazelas da vida dos excluídos, em meio a pílulas de sabedoria popular com que presenteia seus leitores. A leitura da obra é extremamente necessária, principalmente neste momento em que as cidades formam bolhas na forma de bairros e condomínios fechados a isolar da realidade do entorno. Saber a verdade dói, mas, humaniza!

Sugestão de boa leitura:

Título: Quarto de despejo: Diário de uma favelada.
Autor: Carolina Maria de Jesus.
Editora/Ano: Editora Ática, 2018.
Preço: R$ 38,94.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Somos sobreviventes!



               
                No último dia de Finados, ao percorrer o cemitério para encontrar os túmulos de meus entes queridos, observei que várias pessoas na minha faixa de idade (inclusive algumas conhecidas) já haviam falecido. Imediatamente lembrei-me de uma mensagem compartilhada em redes sociais que se tornou viral e que mostra produtos, filmes e séries da infância e adolescência de pessoas da minha geração e que afirmava que, aos poucos, estamos saindo de cena, pois, estamos indo embora. Por ocasião das festas de fim de ano, encontrei pessoas que há muito não via, e fiquei surpreso com a forma carinhosa e feliz ao nos revermos. Parecia que ao nos reencontrarmos, saudávamo-nos mutuamente, como que a afirmar: ainda estamos aqui! Somos sobreviventes!
De igual forma, algumas pessoas com as quais convivi, ao me reencontrar nas redes sociais, mostraram estar felizes com isso demonstrando que minha existência não passou despercebida em suas vidas. E isso me surpreendeu positivamente, pois, em alguns casos, considerei que não fiz no tempo de nossa convivência nada de especial para receber tal consideração. Há uma frase popularmente conhecida e que afirma: “a vida começa aos quarenta”. Esta frase, em meu ver, está acertadíssima. É na faixa dos quarenta anos que adquirimos a maturidade, a sabedoria e a consciência acerca de nós mesmos. Aprendemos muito sobre as nossas qualidades e as nossas limitações.
Mas há algo difícil de traduzir em palavras quando atingimos a faixa etária dos cinquenta anos. Ao atingir esta marca, nos tornamos condescendentes com nós mesmos, nos perdoamos pelos erros que cometemos, afinal, somos humanos. Não podemos esperar acertar sempre. Aceitamos as nossas limitações. E passamos a ter orgulho dos fios brancos que aparecem em nosso cabelo. Olhamos para trás, lembramos das expectativas (pessoais/profissionais/materiais) que tínhamos para o momento em que alcançássemos essa idade e, ao constatarmos que muito deixamos de realizar, não nos sentimos frustrados. “Somos o que conseguimos ser” como diz a canção. Não faltaram esforços, mas, como nos diz Marx, “fazemos nossa história não como a queremos, mas, conforme as condições dadas”. Somos eu e você (que compartilha da mesma geração) testemunhas vivas de grandes transformações históricas e tecnológicas que mudaram o Brasil e o mundo. Passamos por dificuldades que nos foram impostas pelo país em que crescemos (autoritarismo, imposição de censura, dificuldades econômicas, inflação galopante, etc.) que a geração do milênio não conhece, pois, apesar do retrocesso que vivemos nos dias atuais, não se compara ao que passamos.
É certo que ao atingir essa idade, sabemos que temos mais passado do que futuro. O corpo começa a dar sinais de que precisa de mais cuidados. Afinal, cuidar tão somente do intelecto e esquecê-lo não contribui para a longevidade, inversamente, abrevia. É difícil traduzir em palavras o sentimento de adentrar na chamada meia idade. É uma mistura de orgulho da pessoa que se conseguiu ser ante as condições dadas. É a sensação de impor à vida uma quinta marcha, rodar mais leve, economizar energia, desfrutar mais do que antes era imperceptível, dar importância ao que realmente importa, não comprando brigas desnecessárias. É ter a consciência de que não irá mudar o mundo conforme pensava em seus arroubos de juventude, mas, que a sociedade e o mundo precisam que tome partido ante os desafios do presente a indicar o caminho para os mais jovens e inexperientes. É saber que, à nossa maneira e ante as condições dadas, contribuímos para que essa sociedade seja um pouco mais humana, solidária e fraterna. Afinal, como disse Robertson Stanley: “É necessário que o mundo depois de ti seja algo melhor, pois, tu viveste nele”.

Convido a todos (as) da minha geração a seguir firmes até os 100!

sábado, 18 de janeiro de 2020

Milton Santos, cidadão do mundo!




            Milton Santos (1926-2001) foi um dos maiores intelectuais do Brasil. Em 1948, formou-se em Direito e, dez anos mais tarde, concluiu o doutorado em Geografia na Universidade de Estrasburgo na França. No governo Janio Quadros foi subchefe da Casa Civil e o propositor original no país do Imposto Sobre Grandes Fortunas - ISGF (jamais discutido e/ou aprovado pelo Congresso Nacional, encontra-se engavetado). Em 1964, presidiu a Comissão Estadual de Planejamento Econômico do Estado da Bahia. Trabalhou como redator do Jornal “A Tarde” de Salvador. Atuou como professor universitário na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ficou conhecido por seu posicionamento ideológico nacionalista. Sua defesa intransigente da democracia e dos interesses nacionais o colocou sob os holofotes do aparelho repressor da ditadura militar (1964-1985). Por suas posições ideológicas, foi preso e demitido da UFBA.
            Obrigado a exilar-se do país, trabalhou como professor na Universidade de Toulouse, Bordeaux e Paris (todas na França). Atuou também na Universidade de Toronto (Canadá), Lima (Peru), Dar Assalaam (Tanzânia), Colúmbia (EUA), Central de Venezuela e Zulia (Venezuela). Retornou ao Brasil em 1977 para lecionar na Universidade de São Paulo (USP). Sua obra é vasta. Milton Santos publicou mais de quarenta livros e trezentos artigos científicos. Recebeu vinte títulos Honoris Causa que lhes foram concedidos por universidades de várias partes do mundo. Foi o primeiro brasileiro a receber um prêmio equivalente ao Nobel, o Prêmio Vautrin Lud, prêmio máximo da Geografia. À época era o único intelectual nascido fora do mundo anglo-saxão a receber tal honraria. Seus livros são estudados especialmente nos departamentos de Geografia, História, Sociologia e Economia de universidades de várias partes do mundo.
            Milton Santos afirmava ser um intelectual outsider, nas palavras dele, não fazia parte de nenhum partido político ou agremiação de intelectuais ou algo parecido. Seu posicionamento expresso em suas falas e obras era fruto tão somente do trabalho incansável de pesquisa e de sua reflexão acerca da realidade vivida. O reconhecimento internacional veio logo, tendo sido consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização dos Estados Americanos (OEA), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Participou também da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo. Além disso, escrevia regularmente na seção 501 d.C. do Mais!
            Nascido a três de maio de 1926 em Brotas de Macaúba, na Chapada Diamantina (BA), era neto de escravos, seus pais foram professores do ensino primário (atual Ensino Fundamental I). Milton Santos foi conscientizado pelos pais acerca da discriminação pela qual certamente passaria na vida e orientado a não desistir. Não foi diferente do que pensavam seus progenitores. Passou por momentos de discriminação racial manifesta e foi obrigado a desistir de cargos de liderança em instituições cuja tradição reservava aos brancos tais postos. Sobre isso afirmou: “Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver ‘subido na vida’.”
            Pergunto-me se o caro leitor caso desconhecedor acerca do intelectual Milton Santos o teria imaginado, um velhinho branco de barba e cabelos brancos. Não se constranja, não é prova indesejada de racismo. É a constatação que em nosso país, a discriminação étnica e social impõe obstáculos gigantescos (quase insuperáveis) a quem foge do padrão, ou seja, o indivíduo branco, sexo masculino, heterossexual e rico. A intenção deste artigo além de enaltecer Milton Santos, é o de valorizar o conhecimento científico, os pesquisadores, a escola e a universidade como único caminho para o desenvolvimento nacional, aquém disso, há apenas a escuridão das mentes vazias que ao terem livros em mãos apenas enxergam um amontoado de palavras escritas, sem qualquer significado, por isso levantam a bandeira ideológica da suavização/desideologização e outras mentes igualmente vazias aderem a essa marcha que leva o país ao abismo!    

sábado, 11 de janeiro de 2020

2019: sobrevivi. Sobrevivestes. Sobreviveremos...




            Este é o primeiro artigo do corrente ano. Impossível começar o novo ano sem fazer breves reflexões sobre o ano que passou. Neste espaço muito já falamos que as pessoas desejam sempre um ano melhor, porém, raramente fazem as necessárias mudanças em suas práticas diárias para que ele ocorra. Também já comentamos sobre a visão do intelectual socialista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) que considerava a passagem do ano um engodo, uma forma do capitalismo renovar a esperança dos trabalhadores que, a despeito da miséria, da exploração e da opressão sofrida durante todo o ano que finda, acreditam surrealmente na redenção sem que uma revolução aconteça. Gramsci, acertadamente afirmava que o sistema não se interrompe e recomeça a cada novo ano. Os acontecimentos do ano anterior prosseguem influenciando e determinando o que ocorrerá no ano que começa. Mas, seja ópio ou não, ver as luzes de natal, a queima de fogos, os cumprimentos de ano novo entre as pessoas que nos são mais queridas, impossível não se deixar contaminar pelo clima festivo, embora saibamos que muito provavelmente 2019 repetir-se-á nos anos seguintes, pois, há condições determinantes que fogem ao nosso alcance. Podemos mudar atitudes e a forma de encarar obstáculos, mas, haverá sempre as decisões tomadas nos grandes centros de poder que nos afetarão dada a nossa condição subalterna característica da classe trabalhadora.
            Qual é a melhor forma de iniciarmos o novo ano? Acredito que esta época deve ser (como é), para muitos, um momento de reflexão sobre a caminhada realizada no ano que passou, e, se os homens constroem a própria história não como a desejam, mas, com as condições dadas como nos ensinou Karl Marx (1818-1883), também é verdade que se por um lado o pessimismo teórico é inevitável, o otimismo prático deve ser a ferramenta utilizada nos embates diários ao longo do período que se inicia. Afinal, o que foi a vida das gerações de trabalhadores que viveram antes da nossa? Uma rotina de exploração, opressão e condições degradantes de trabalho em meio a relações sociais que sempre lhes impuseram a humilhação por sua condição social, como se subumanos fossem, algo que pouco ou nada mudou com o avançar dos séculos. Apesar disso, os integrantes da classe trabalhadora do passado como da atualidade, nunca deixaram de perseguir suas utopias. No dizer de Eduardo Galeano (1940-2015), “a utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
            A conjuntura política e econômica que hoje se apresenta é extremamente lesiva aos interesses da classe trabalhadora. Trabalhador que sou, olho e escrevo tendo como suporte o chão em que piso. Penso ser muito natural que a leitura de meus artigos ou, a consciência acerca da ideologia que me é própria, incomode (a nível psicológico) pessoas reacionárias que buscam conservar seus privilégios quando compartilhamos dos mesmos espaços públicos. No entanto, surrealmente observo que pessoas mais pobres do que eu também defendem grupos políticos cujos projetos têm uma forte ênfase em garantir a eternização dos privilégios de uma minoria que se beneficia do Estado Brasileiro desde os tempos coloniais. É o famigerado pobre de direita. A desgraça nacional. Afinal, como nos disse Simone de Beauvoir (1908-1996): “o opressor não seria tão forte se não houvesse cúmplices entre os oprimidos”.  A esse mesmo respeito, o intelectual e escritor Luis Fernando Veríssimo questionado sobre se era cansativo ser de esquerda ou se seria mais cansativo ainda não ser de esquerda, disse: “talvez ingenuamente, eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades sociais e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência. Mas que às vezes desanima, desanima”. Essa fala faz todo o sentido, afinal somos um país em que as pessoas não sabem o que as ideologias de esquerda e de direita representam. Assim, muita gente vota em candidatos e partidos de direita esperando ser atendidos em reivindicações que constituem a pauta central de preocupações da esquerda e não da direita.
            Segundo o intelectual Jessé Souza, somente duas coisas salvariam o Brasil: consciência de classe e interpretação de texto. É isso que desejo ao povo brasileiro, pois, a redenção do país não virá de cima, o povo precisa estar à altura do país que deseja ter. Não dá para esperar de braços cruzados. É uma construção. Cada um tem que colocar um tijolo. E nenhum prédio fica em pé sem uma base forte. Que em 2020 continuemos alimentando nossas utopias! Feliz Ano Novo!