Há alguns dias a Netflix disponibilizou o documentário
“Democracia em vertigem”¹ dirigido por Petra Costa. Tendo em conta a ampla
repercussão acerca da obra, considerada por muitos como merecedora de uma
futura indicação ao Oscar, não tardei em assisti-la. Fiquei tão perturbado pela
obra audiovisual que hoje resolvi assisti-la novamente. Não há nada no
documentário que eu não tenha lido em dezenas de livros e centenas de artigos.
Mas, é chocante assistir as imagens e ouvir os áudios de fatos que tal como
peças de um quebra-cabeça montam o mosaico do Brasil surreal que se delineou a
partir de então e que mais se parece a obra de Franz Kafka tornada realidade.
Não obstante assistir por duas vezes o documentário li artigos publicados em grandes
jornais e revistas de circulação nacional para entender como estes o percebiam. No documentário, Petra Costa situa o seu
nascimento pouco anterior ao inicio do período democrático pós-ditadura militar
(1964-1985). Também torna conhecida sua condição de observadora integrante da
elite rica do país, neta de um dos sócio-fundadores (avô materno) da
mega-construtora Andrade Gutierrez e filha de pais militantes de esquerda
durante os anos de chumbo, os quais viveram na clandestinidade em Londrina e
cujo paradeiro os pais ignoravam. Na Folha de São Paulo, Breno Altman afirma
que “o documentário “Democracia em vertigem” não é para corações e mentes
desavisados. Cada pedaço de narrativa é um golpe no estômago, flertando com a
tessitura de uma tragédia shakespeariana”. Registra ainda que “‘Democracia em
vertigem’ é um libelo contra o desmoronamento de um sonho de liberdade e
justiça, mas nenhum dos personagens, incluindo as vítimas centrais desse
terremoto político, foi poupado pela documentarista”. Eu seu artigo, Altman
afirma que no documentário Lula e Dilma não são idealizados.²
A obra mostra Luís Inácio Lula da Silva se lamentando por
não ter feito a regulação econômica dos meios de comunicação no tempo em que
estava à frente do Poder Executivo nacional. Sua inação neste quesito é alvo de
muitas críticas dos setores progressistas da sociedade (inclusive do autor
destas linhas e já publicadas neste espaço). É importante lembrar que regulação
econômica da mídia nada tem a ver com censura, mas, em cumprir a Constituição
Federal de 1988 que proíbe a propriedade cruzada dos meios de comunicação
(Emissoras de TV’s, rádios, jornais e revistas). O documentário mostra Dilma
lamentando o alto custo imposto ao Governo e ao PT com as alianças que se
fizeram necessárias para obter a governabilidade e assessores lamentando que
nos governos petistas não fora proposto a reforma política que impedisse o
financiamento de campanhas pelas empresas, fonte maior da corrupção do sistema
democrático, no qual o PT acabou por aderir por considerar normal, pois, todos
assim faziam. Um momento interessante é quando um assessor do ex-presidente
Lula afirma que um lema do PT era “um pé dentro e um pé fora”, ou seja, atuar
dentro das instituições, mas, sem jamais perder o contato com as bases e
segundo este assessor, o Partido dos Trabalhadores pensou que poderia governar
por dentro mantendo relações cordiais com a elite financeira do país e acabou
por perder a conexão com a sociedade.
Fernando Carneiro em seu artigo “‘Democracia em vertigem’
é honesto, mas ignora questões essenciais” (publicado na revista Época do Grupo
Globo) critica a ausência do registro da atuação dos militares como partícipes
dos fatos que resultaram na atual realidade nacional com Jair Bolsonaro na
presidência. Discorda que a elite “forçosamente” de direita tenha o papel a ela
imposto como criadora de uma situação artificial para forçar a saída de Dilma.
Coloca a culpa de sua deposição na má administração política e econômica
(ignorando que impeachment somente pode ocorrer por crimes de responsabilidade
e não por má administração) e afirma que a pressão das ruas veio de “uma ralé
moralista que ascendeu graças ao PT. Os agora malditos pobres de direita”.
Coloca ainda os representantes do petismo no poder no mesmo balaio, pois,
segundo ele Bolsonaro e Maluf também votaram com o PT e que os dois declararam
que já apoiaram Lula no passado e que “a cama foi feita e nela todos se
deitaram” (ignorando que o sistema de presidencialismo de coalizão obriga todo
governante que não possui maioria parlamentar a fazer alianças mesmo bizarras
para obter a governabilidade). No artigo critica Bolsonaro pela ausência de
consciência liberal e pelo excesso de corporativismo (a defesa do soldo e dos
privilégios dos militares), afirma ainda que “o governo (Bolsonaro) está nos
levando para uma recessão que não estava no radar”. Reitera que o impeachment
de Dilma e a perseguição de Lula, com Moro e Dallagnol em seu encalço, mostrou
a vitória incontestável, para o bem e para o mal, da supracitada ralé
reacionária que subiu com os grandes avanços sociais do Brasil, promovidos pelo
PT. Conclui dizendo que “o filme entristece muito as pessoas. Gera muita
vergonha alheia”. “E que [...] o “campo democrático” voltará com força. [...] e
que espera que a história não se repita nem como farsa, nem como tragicomédia –
ficcional ou não”. ³
De minha parte, considero que caso lesse uma obra de
ficção retratando processos como o de impeachment sofrido por Dilma e aquele
levado a efeito contra o ex-presidente Lula não teria dúvida alguma de se
tratar de uma obra kafkiana ou nela inspirada. É famosa a frase “a vida imita a
arte”, no caso brasileiro, superou-a!
Fontes:
1. Democracia
em vertigem (2019), duração: 2h01’ – Diretora: Petra Costa. Disponível na
Netflix.
2. Disponível
em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/06/cada-pedaco-de-democracia-em-vertigem-e-um-golpe-no-estomago-que-estremece-o-espectador.shtml
- acesso em 25 de junho de 2019.
3. Disponível
em: https://epoca.globo.com/artigo-democracia-em-vertigem-honesto-mas-ignora-questoes-essenciais-23759475
- acesso em 25 de junho de 2019.