Powered By Blogger

sábado, 29 de março de 2025

Crime sem castigo

 


        Uma ótima sugestão de leitura para o leitor que gosta do gênero literatura-reportagem é o recém lançado livro "Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva" da jornalista Juliana Dal Piva (1986). Juliana é colunista do UOL e foi repórter especial do jornal O Globo e da revista Época. Juliana Dal Piva, adaptou sua dissertação de mestrado defendida em 2014 na Fundação Getulio Vargas (FGV) para o formato de livro. Apesar de ser orientada já àquela época para que assim procedesse, ela optou por aguardar novos desdobramentos do emperrado caso, algo comum quando se trata da apuração dos crimes cometidos pelos militares na período ditatorial (1964-1985) e, observando a atenção despertada pelo caso, por ocasião do lançamento do filme "Ainda estou aqui" de Walter Salles, decidiu que era a hora de publicar seu livro.

            Na obra, Juliana destaca o importante papel da imprensa no esclarecimento do caso. Ao longo de seu processo investigativo, a jornalista constatou a dificuldade que é entravar uma luta contra o "sistema" para apurar fatos e documentos. Em seu ver, o sistema existe, mas não tem rosto, não atende por um nome específico, mas é onipresente, está em todas as repartições. Ele atua dificultando, seja pela morosidade de sua ação ou pela negativa de acesso a documentação ainda existente, pois, os próprios militares deram cabo de muita documentação ao final da ditadura militar.

            Juliana constatou dois aspectos característicos do sistema: 1. A ditadura militar e sua fábrica de mentiras para explicar e ocultar sua culpabilidade em crimes cometidos contra os direitos humanos e, portanto passíveis de condenação internacional, com o intuito de resguardar a pseudo-imagem do país e do regime. 2. A constatação de que o Estado Brasileiro mesmo após o fim da ditadura militar e da promulgação da Constituição Federal de 1988 continuou contribuindo para a impunidade dos criminosos militares ao dificultar, realizar chicanes interpretativas, tornando extremamente moroso o processo de esclarecimento dos casos envolvendo desaparecidos políticos do período ditatorial.

            Juliana Dal Piva afirma ter escolhido este caso devido a grande quantidade de documentação para ser apurada, confirmada ou refutada e não devido ao seu status de homem branco, classe média-alta, ex-deputado federal (cassado pelo regime militar em 1964) e proprietário de uma grande empresa de engenharia. Rubens Paiva tinha relações com pessoas e famílias importantes da sociedade brasileira. Ele foi preso pelos militares em sua casa, diante da esposa e filhos e chegou ao DOI-CODI em 20 de janeiro de 1971 e no dia seguinte estava morto (sob tortura). O motivo de sua prisão era ser o elo entre exilados políticos no Chile e seus familiares, aos quais entregava cartas destes. Os militares responsáveis pela sua morte (nominados no livro) provavelmente tentaram tirar dele o que não existia, pois não fazia parte da luta armada. A atenção nacional e internacional dispensada ao caso por meio do filme trouxe grande constrangimento ao Estado Brasileiro e ao STF que  parece dar indicações de destravar o referido processo judicial.

 

Sugestão de boa leitura:

Título: Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva.

Autor: Juliana Dal Piva.

Editora: Matrix, 2025, 208 p.

sábado, 22 de março de 2025

Qual é a sua utopia?

 

            São muitas as ocasiões em que temos que explicar o significado de termos e palavras que não são de uso cotidiano dos estudantes. Não raras vezes, eles nos pedem que fale a "língua deles". Explico-lhes que na qualidade de estudantes, eles precisam aumentar seu vocabulário e o professor não estaria auxiliando falando a "língua deles". Sobre isso tenho a impressão que nosso vocabulário empobreceu, pois leio obras clássicas de literatura nacional e observo que uma grande quantidade de palavras não são mais de uso corriqueiro.

            Há alguns dias, ao tratar de sistemas socioeconômicos, perguntei-lhes sobre qual era sua utopia. Os estudantes me responderam não a ter. Disse-lhes que uma vida vivida sem acalentar uma utopia era uma vida que não vale a pena ser vivida. Um estudante tomou coragem e perguntou "o que é uma utopia"? Expliquei-lhes que utopia, do grego "u+topos" significa um lugar que não existe. Disse que o termo é utilizado para designar um sonho, uma ilusão, um desejo que dificilmente se realizará.

            Perguntei a cada um sua utopia e dentre as citadas estavam: ser ator/atriz de cinema; ser jogador da seleção brasileira; ser milionário; ser modelo famosa, etc. Após todos falarem, pretendia revelar a minha utopia: um mundo sem guerras; sem qualquer tipo de violência; sem discriminação de qualquer tipo; sem moradores de rua; sem pobreza; sem trabalho infantil, enfim, como nas palavras do magnífico Papa Francisco, "um mundo onde todos tenham terra, pão e trabalho". Perguntei ao final, qual a utopia mais bonita? Qual a mais necessária? Qual a mais difícil de se realizar?

            Os estudantes chegaram à conclusão que todos pensaram em si próprios e não no bem de toda a sociedade. Um estudante argumentou que se cada um não pensasse em si próprio, quem pensaria? Respondi-lhe que não precisamos ser felizes sozinhos e que todos seriam mais felizes em comunhão. Após esta aula, entrei em outra classe, e tudo seguia o mesmo script, porém, a penúltima estudante a falar, disse que sua utopia era ter seu falecido pai de volta e a última, afirmou que sua utopia era que sua irmãzinha ficasse curada de uma síndrome rara que lhe impedia de andar. Inevitavelmente, fiquei com um nó na garganta e aprendi que uma utopia de caráter pessoal pode ser tão linda e preciosa quanto uma utopia coletiva.

            O saudoso jornalista e escritor Eduardo Galeano (1940-2015) professou: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".

 

 

 

sábado, 15 de março de 2025

Ladrões de cabrito

 

             


Eu gosto de alternar livros de ficção e de não ficção e, sendo um assinante do Clube do Livro da Editora Expressão Popular, que tem nessa premissa, a escolha das obras para a publicação com o seu selo, tenho sempre boas opções de leitura, pois a editora prima pela qualidade da formação militante. Eis que escolho um livro com o título  pouco chamativo de "ladrões de cabrito" e me deparo com uma obra de ficção, pelo autor cuidadosamente retratada como tal (na ficha catalográfica), porém, após a leitura, fica a pergunta: quanto disso é realmente ficção e quanto não é?

            A dúvida se torna ainda maior, quando sabemos que o escritor Thalles Gomes (Maceió - 1984) integrou a Brigada de Solidariedade Internacionalista da Via Campesina no Haiti em 2010. O autor esteve no Haiti durante parte do período de abrangência da Minustah (2004-2017), a missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) que tinha por objetivo estabilizar e manter a ordem no país, após o movimento insurgente que depôs o presidente Jean Bertrand Aristide. O comando da missão foi delegada pela ONU ao Brasil, que no afã de se fazer um candidato viável para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU sempre se mostrou apto e disponível para tais empreitadas.

            Gomes, por meio da personagem Judeline, uma migrante haitiana, encontra uma conexão profunda entre Maceió (AL) e o seu país natal. No Brasil, Judeline se vê envolvida em situações análogas às de sua  triste vida no Haiti. Lembro da música "Haiti" (Caetano Veloso / Gilberto Gil) que, ao mesmo tempo que pede orações para o país caribenho, lembra que o Haiti também é aqui, dadas as injustiças sociais. O Haiti, sabemos, é o país que possui o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente americano, sendo um dos países mais pobres do mundo. Alagoas é o penúltimo estado brasileiro em IDH e, em especial, Maceió, sua capital, na qual a obra é ambientada, é o reflexo do Haiti.

            No Haiti, a população escravizada, fez uma revolução (1791-1804) e expulsou os colonizadores, concomitantemente em Alagoas, os senhores de escravos temiam um movimento semelhante, luta houve, sucesso não. Na obra, são relatadas feridas pela passagem do Exército Brasileiro no Haiti, violência excessiva, massacres, exploração sexual de jovens, drogas transportadas em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). A facilidade com que as gangues haitianas tinham acesso a armas em um país em que não haviam indústrias bélicas. Da mesma forma, a personagem se depara com situações idênticas em Maceió. A xenofobia, o racismo, a exploração sexual de jovens, o trabalho semi-escravo em casas de famílias da alta sociedade. Até mesmo, o terremoto de 2010 no Haiti ocasionado pela movimentação de placas tectônicas encontra um paralelo na Maceió e seus frequentes tremores de terra, por acomodação do terreno, devido a exploração de sal-gema do subsolo pela gananciosa Braskem, em ambos casos, milhares de lares foram destruídos. Contra as forças da natureza, há que se conformar, quanto à ganância irresponsável, não. Fica a dica!

P.S. 1. As camadas da obra (entrelinhas) se revelam, conforme o grau de informação do leitor;

        2. Ladrões de cabrito é como os soldados da Minustah eram chamados pelos haitianos.

 

Sugestão de boa leitura:

Título: Ladrões de cabrito.

Autor: Thalles Gomes.

Editora: Expressão Popular, 2024, 152 p.

sábado, 8 de março de 2025

O Oscar como devolução do corpo de Rubens Paiva

 

        Quando esta coluna for publicada, o Oscar do filme "Ainda estou aqui" que turbinou o Carnaval, não será mais notícia recente, mesmo assim, resolvi retomar o tema. Trata-se de um feito esplêndido, tendo em vista ter sido produzido em língua não inglesa, o que, por si, já diminui suas chances. Quem o assistiu, certamente entendeu porque ele foi indicado e premiado. Obviamente, ficou uma decepção pelo fato de a magnífica Fernanda Torres não ter ganho na categoria Atriz, no entanto, ela trouxe o Globo de Ouro, o que não é pouco.

            Vi muitas críticas ao filme partindo de pessoas saudosistas da ditadura militar (1964-1985) e, também de jovens alienados, pois destes últimos, somente uma formação insuficiente e acrítica consegue explicar seu posicionamento reacionário. Houve quem falou que o filme consumiu recursos da Lei Rouanet, algo que não é verdadeiro. Se fosse, tais recursos teriam sido muito bem aplicados, pois projetou positivamente a imagem do país no exterior. A Lei Rouanet permite que pessoas e empresas apliquem recursos financeiros em projetos culturais e possam deduzi-los do Imposto de Renda. Tais críticas à Lei Rouanet  são injustificadas, principalmente em um país, onde pensões vitalícias são pagas a filhas "solteiras" de Generais e no qual o poderoso Agronegócio é fortemente subsidiado e desonerado de impostos de exportação.

            O filme "Ainda estou aqui" é pedagógico e faz justiça não somente à Eunice Paiva e família, como também às pessoas que foram arbitrariamente presas, torturadas e mortas durante a ditadura militar. A Lei de Anistia (1979), embora comemorada por uma nação cansada e traumatizada pelos "anos de chumbo", acabou por dar salvo conduto no período pós-ditadura, aos militares criminosos. Ocorre que crimes contra os Direitos Humanos como a tortura, pelo Direito Internacional são imprescritíveis, inafiançáveis e não poderiam estar cobertos pela referida lei. Há um processo no STF que transita tão desinteressada e lentamente que os criminosos estão falecendo de velhos sem jamais terem sido julgados.

            O filme, um orgulho nacional, se eternizará na história nacional e na mente das pessoas. Também deve se eternizar o pensamento expresso pelo saudoso Ulysses Guimarães (1916-1992), o "Senhor Constituinte" que no discurso histórico de promulgação da Constituição Federal (1988) disse: "temos ódio e nojo à ditadura". A impunidade estimula o golpismo! Sem anistia! Tortura nunca mais! Ditadura nunca mais!

P.S. O título foi retirado de fala do ator Selton Mello sobre o filme.

 

sábado, 1 de março de 2025

Desabafo de um professor

 

                Em meus primeiros anos no ofício do magistério, não gostava de feriados, pois eles atrapalhavam o andamento do conteúdo. Naquele tempo, na sala de professores,  também não gostava das conversas de professores veteranos cujo tema era invariavelmente o tempo que lhes faltava para a aposentadoria. Costumava me questionar sobre como podiam agir assim, afinal era tão prazeroso trabalhar o conhecimento científico. Hoje eu sou o professor que conta o tempo (longo) restante para a aposentadoria e, faço aqui um mea culpa. Peço desculpas aos educadores da geração anterior, pois agora lhes entendo.

            Li certa vez, que os estudantes perdem o brilho dos olhos ao longo do período escolar, acrescento: também os professores, ao longo da carreira, dadas as precárias condições de trabalho ofertadas. Eu fui um jovem e idealista professor e, realmente acreditava que poderia auxiliar na formação de jovens tornando-os aptos a contribuir na construção de uma sociedade melhor. Ledo engano, nós professores, não conseguimos sequer fazê-los estudar, fazer a tarefa de casa, prestar atenção nas explicações, refletir, interpretar, seguir regras de convivência no espaço escolar. Apesar disso, somos chamados de doutrinadores. Oxalá tivéssemos tal influência sobre os educandos, pois teríamos melhores resultados.

            Li, certa vez, que uma professora dedicou sua vida ao magistério. Amava lecionar. Usava o seu tempo livre nos fins de semana para preparar aulas e, não via a hora de estar novamente em classe. Como além do trabalho, não tinha vida social, não casou, não formou família. O tempo passou. Protelou por algum tempo a aposentadoria, mas, teve que se dobrar às cobranças da idade. Aposentada, voltou um mês depois na escola, os estudantes não a cumprimentaram e, na sala de professores, percebeu olhares enviesados de "o que está fazendo aqui"? Se sentiu como uma peça de máquina desgastada, substituída e descartada.

            A gente lê sobre isso. A gente vê acontecer diante dos nossos olhos com outros professores. No entanto, a gente sempre, lá no "fundinho da alma" espera que conosco  seja diferente, mas não é. Não será. Somos todos peças descartáveis dessa máquina de moer grandes espíritos e rebaixá-los a maior das misérias humanas. Aquela que mata de fome, não o corpo, mas a alma. O leitor poderá dizer, se é assim, por que não larga mão? É que nós professores, somos todos sobreviventes, e  nos apegando à tábua de salvação restante da Nau Educação, resistimos, mesmo sabendo que jamais chegaremos a porto seguro e, que nem seremos resgatados nesse oceano de ingratidão.