Neste espaço, várias vezes nos referimos a Nelson
Rodrigues, principalmente quanto aos conceitos de Narciso às avessas e Complexo
de vira-latas que o dramaturgo afirmava que o brasileiro médio era portador.
Apesar de muito ter lido e assistido sobre Nelson Rodrigues, somente agora li
na íntegra uma obra sua, trata-se de "O beijo no asfalto". A referida
peça foi encomendada a Nelson Rodrigues pela brilhante atriz Fernanda
Montenegro que desejava encenar no teatro alguma criação do famoso dramaturgo,
fato que aconteceu em 1961. Nelson Rodrigues costumava escrever sobre o cidadão
médio, aquele que tinha uma vida comum, mas nele buscava desvendar suas
contradições ante a hipócrita moralidade coletiva. É dessa forma que se
desenvolve a trama de "O beijo no asfalto", nela Aprígio (o sogro) e
Arandir (o genro) caminham até a Caixa Econômica Federal na intenção de obter
um empréstimo para o marido de sua
filha. Momento em que presenciam um acidente que ocorre muito próximo a eles.
Um rapaz que caminhava no meio-fio tropeça e cai na rua, uma lotação não
consegue parar e o atropela.
Arandir que estava muito próximo, levanta a cabeça do
rapaz moribundo e beija-o na boca. Ante a circulação normal de pedestres e
motoristas pelo local, o acidente e a cena insólita do beijo, deixam atônitas
as pessoas presentes no local que não compreendem a reação de Arandir. Amado,
um jornalista conhecido pelo sensacionalismo de suas matérias, pouco ligadas à
realidade dos fatos, e que passava pelo local presenciou a cena. O jornalista
vê nela uma oportunidade de vender mais jornais e começa a levantar hipóteses
desvirtuando a realidade do fato observado. Nesse mesmo sentido, a polícia conduz
a investigação e interroga Arandir. Tanto o delegado Cunha, como o jornalista,
lançam suspeição sobre Arandir. Arandir e a vítima eram desconhecidos (como
afirma Arandir)? Os dois rapazes, embora casados, eram amantes? Arandir teria
arremessado a vítima, que caiu e, assim foi atropelada pela lotação?
Aprígio conta o fato ocorrido para a bela filha Selminha
(esposa de Arandir) e também para Dália, a filha mais nova. Aprígio é viúvo e,
após a morte da esposa, jamais se casou. A versão contada por Aprígio é,
segundo o próprio, tal como ele viu. As duas irmãs não concordam com a
narrativa do pai. As irmãs afirmam que os comentários raivosos do pai se deve
ao ciúme que tem de Selminha, pois era contra o casamento, prova disso é que ao
se referir a Arandir chama ele de "genro" ou "seu marido"
(para Selminha). Selminha afirma que o marido é muito homem (a procura muito) e
que a prova disso é a sua gravidez. Dália concorda e diz que se a irmã não
houvesse se casado com Arandir ela faria isso. Aprígio afirma que há homens que
tal como as lâminas, cortam dos dois lados. Selminha conta ao pai que Arandir
(não intencionalmente) viu Dália nua e que sentiu atração, mas, contou para ela
de forma a não haver mal entendido. Seu marido era muito homem e também um
marido fiel. E que acredita que o ato do marido foi genuinamente humano, beijar
alguém que estava morrendo.
A escalada de desinformação promovida pelas matérias de
capa do jornal sensacionalista torna a vida da família um inferno. Arandir é
solto e, novamente procurado, ninguém sabe seu paradeiro. Selminha é conduzida
para interrogatório numa casa determinada pelo delegado Cunha (procedimento
incomum). Selminha é interrogada e por afirmar não saber o paradeiro de Arandir
(estava escondido na casa) e por não dar as respostas (certas), ou seja,
aquelas que confirmavam a hipótese do delegado é colocada nua visando quebrar
seu moral e resistência. Selminha é libertada e conta a Dália a humilhação que
passou, pois foi colocada nua pelo delegado. O jornalista vai ao encontro de
Aprígio em busca de novas informações e dá a ele a sua opinião. Amado afirma
que fosse ele o sogro, daria uns tiros no genro que não apenas desonrou o
casamento com sua filha, mas o nome da família. Aprígio pergunta ao jornalista
por que ele está dizendo isso, se ele quer mais sangue para vender ainda mais
jornal. Paro aqui para não dar spoiler. Fica a dica!
Sugestão
de boa leitura:
Título: O melhor de Nelson Rodrigues:
teatro, contos e crônicas.
Autor: Nelson Rodrigues.
Editora: Nova Fronteira, 2018, 240 pág.
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