Powered By Blogger

sábado, 23 de abril de 2022

O Pagador de Promessas

 

O livro "O Pagador de Promessas" do romancista, contista e teatrólogo Dias Gomes (1922-1999) é uma peça teatral do gênero dramático. Para quem não é familiarizado com a leitura de obras escritas para o teatro, elas vêm estruturadas em atos e cenas inclusive com as indicações do autor para a representação conforme ele a idealizou. A narrativa se desenvolve  acerca do pagamento de uma promessa cuja graça foi alcançada por Zé do Burro (personagem principal). O burro de nome Nicolau acompanhava seu tutor a todo lugar onde ia. Zé considerava o animal como seu melhor amigo. Ocorre que uma tempestade de raios ao atingir uma árvore fez com que um galho caísse sobre o animal. Acometido de forte hemorragia, o animal começou a definhar apesar de todos os cuidados prestados pelo "doutor". Para salvar seu amigo, Zé recorreu a curandeiros, mas, foi em um terreiro de candomblé em que diante da imagem de Iansã (orixá feminino correspondente a Santa Bárbara no rito católico) que ele fez a promessa de dividir em partes iguais seu sítio com algumas pessoas despossuídas de terra e carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo até a Igreja de Santa Bárbara que distava sete léguas (46,2 km) e colocá-la no altar da referida igreja. Rosa, a matuta e sexy esposa de Zé do Burro o acompanha e eles chegam de madrugada e encontram a igreja ainda fechada. Pelo local passava um cafetão cuja alcunha é "Bonitão" que logo busca se inteirar do fato inusitado e se engraça com a atraente esposa de Zé do Burro. Rosa corresponde, talvez pela carência em um matrimônio no qual pouca atenção recebe.

            Após se inteirar da promessa de Zé do Burro, Bonitão se oferece para encontrar um hotel para eles descansarem, porém, Zé afirma que receia que a cruz seja roubada e Bonitão lhe diz que a região tem muito ladrão e que ele poderia levar Rosa para um hotel próximo para que ela então descansasse. Ardil que funcionou e dessa forma Bonitão e Rosa ficam juntos no hotel. Amanhece o dia de Santa Bárbara e logo pela manhã a Igreja é aberta e o sacristão conversa com Zé do Burro e fica sabendo das intenções deste. O padre Olavo conversa com Zé do Burro e o questiona sobre sua promessa, momento em que começa a confusão. A promessa feita em um terreiro de candomblé em frente a uma imagem de Iansã para ser paga em frente a um altar da igreja católica de Santa Bárbara em troca da salvação de um animal quadrúpede (um burro) não tem a aceitação do padre que se recusa a deixá-lo entrar na Igreja. Logo a cidade toda fica sabendo do fato, e com a confusão formada, muitos querem se aproveitar da situação. O comerciante busca fazer publicidade de seu estabelecimento junto ao burburinho e um jornal sensacionalista amplia o acontecimento dando ao mesmo significados totalmente distorcidos. Zé do Burro que apenas queria pagar sua promessa estampa a pagina principal do jornal ora como um revolucionário comunista que é contra a exploração do homem pelo homem, ora como um militante em favor da reforma agrária. Para a polícia passa a ser visto como um agitador social comunista que passa a vigiá-lo. O povo começa a ver nele um novo Cristo e pessoas vão até ele pedir a cura de suas doenças. O jornal continua a imprimir suas manchetes dando a ele novos tons: "místico ou agitador?" e a questionar o papel da Igreja na recusa de receber a cruz no altar embora não tenha nenhum interesse no desfecho do caso que lhe está possibilitando o aumento da publicidade em suas páginas e do incremento de vendas de exemplares.

            Preocupado com a dimensão que o caso tomou, o bispo vai até a paróquia para tentar resolver a situação. O bispo diz estar preocupado com a dimensão política que o caso tomou, pois, pode afetar a imagem da Igreja Católica. O padre Olavo afirma que somente viu pelo aspecto religioso no qual condenou o curandeirismo e o paganismo. O bispo tenta fazer com que Zé renuncie à sua promessa (sem sucesso). A obra denuncia a intolerância religiosa, a opressão do Estado por meio da polícia e divulga aspectos da cultura popular, os bailes, a prostituição e a ingenuidade das pessoas e, claro, a ação da imprensa sensacionalista cuja opinião é mais importante do que o fato em si. O final, obviamente, tem uma carga dramática espetacular que não revelarei aqui, apesar da ampla popularidade que alcançou. A peça foi retratada em duas versões cinematográficas e em uma minissérie pela TV Globo. Indico a versão cinematográfica de 1962 sob a direção de Anselmo Duarte e com Leonardo Villar no papel de Zé do Burro e Glória Menezes (então moça) no papel de Rosa, a qual apesar de ser em preto e branco é a melhor.

Sugestão de boa leitura:

Título: O Pagador de Promessas.

Autor: Dias Gomes.

Editora: Nova Fronteira, 2010, 152 p.

 

 


terça-feira, 19 de abril de 2022

A Rússia na Guerra Fria 2.0 - parte 5

            

            O genial escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) afirmava que sempre que alguém tenta esgotar um assunto, esgota também a paciência do leitor. Ciente disso, peço desculpas por uma vez mais trazer a temática retratada no título. Peço que considere o fato de ser este humilde escriba sofredor de distúrbios psicológicos que o cobrariam pela omissão de aspectos relevantes. Prometo também que na próxima edição mudarei o tema de nossa conversa. Como aqui já disse, "em uma guerra, a primeira vítima é a verdade". A guerra entre Rússia e Ucrânia segue o script, ou seja, é uma guerra de narrativas. Denúncias de crimes de guerra contra a Rússia foram feitas e, com uma agilidade imprudente, pelo Ocidente foram chanceladas como verdadeiras, apesar de carecerem de investigação. A Rússia, por sua vez, acusa a Ucrânia de montar cenários e produzir provas falsas com o intuito de posar como vítima e conseguir apoio internacional. Afirma ainda que a Ucrânia utiliza a população civil como escudo de proteção de alvos militares daquele país.

            A Rússia acusou os EUA de  colaborar com a Ucrânia em experimentos de armas biológicas conforme vestígios encontrados nesta última. A Rússia também acusa a Ucrânia pela forte presença de grupos nazistas no aparato estatal, especialmente no setor militar após o golpe de 2014. O que chama atenção é como as denúncias ucranianas sobre crimes de guerra da Rússia são logo acatadas como verdade incontestável pelo Ocidente. Engana-se quem pensa que essa guerra de narrativas tem como origem apenas os países beligerantes. A mídia ocidental está engajada como sempre na disputa da hegemonia do discurso, algo que faz eficientemente. A Rússia reclama de uma campanha ocidental na semeadura da russofobia nas mentes da humanidade. É impossível se chegar à verdade sem ouvir os dois lados de uma contenda. Não por acaso, a mídia russa foi banida das redes sociais do mundo ocidental.

            Nunca um país sofreu tantas sanções econômicas como a Rússia. O que estranha é que outros países que promoveram conflitos (internos ou externos) e comprovadamente cometeram crimes de guerra passaram incólumes. A OTAN, em especial, os Estados Unidos da América são exemplos disso, porém, acusam a Rússia de atos que também praticaram nos conflitos onde se envolveram. Como popularmente se fala: "é o sujo falando do mal lavado". Os EUA tem uma longa lista de crimes de guerra, podemos citar como exemplos, o bombardeio de inocentes com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki (ato impiedoso ímpar na história da humanidade), o bombardeio com armas químicas no Vietnã, o apoio e colaboração com ditaduras sanguinárias na América Latina durante a Guerra Fria e, recentemente, as torturas praticadas contra prisioneiros em Abu Ghraib (Iraque) e em Guantánamo (possessão estadunidense em Cuba). Os Estados Unidos jamais foram punidos por seus crimes de guerra, da mesma forma, nações imperialistas europeias que promoveram genocídios na colonização do continente americano, africano e asiático. Se poderá falar que à época da colonização, não havia tribunais internacionais, no entanto, nem depois da sua criação após a Segunda Guerra Mundial isso acontece. É verdadeira a frase do escritor inglês George Orwell (1903-1950) quando disse:  "a lei é para todos, mas, alguns são mais iguais que os outros".

            Qualquer pessoa minimamente esclarecida, já percebeu que a contenda entre Ucrânia e Rússia é de grande interesse para os EUA e a OTAN. Ela propiciou às potências ocidentais uma oportunidade de ouro para promover o estrangulamento econômico da Rússia e, assim enfraquecer tal país e consequentemente atingir a aliança com a China. Como já disse, o pano de fundo do conflito na Ucrânia é a disputa pela hegemonia mundial. O Ocidente a quer manter no Atlântico ante os indícios de que ela tende a migrar para o Pacífico (China - Rússia). Fala-se até na possibilidade de que o BRICS que constitui até o presente momento um grupo informal de discussão e cooperação entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul possa a vir formar uma aliança militar nos moldes da OTAN. A se efetivar tal intento, o Brasil teria que optar em estreitar laços com estes países, o que desagradaria os Estados Unidos da América e a Europa. Estreitar ainda mais os laços econômicos com o grupo seria muito bom, porém, no campo militar a situação se complica, pois, teria que romper com sua histórica política de neutralidade. A iniciativa esbarra ainda no histórico de conflitos territoriais entre China e Índia, embora, esta última tenha criticado as sanções impostas à Rússia e tenha afirmado que poderá realizar compras da Rússia em rublos se esta assim solicitar.

            Encerro dizendo, que os direitos humanos são universais e, as penalidades da lei internacional deveriam ser aplicadas a todos. Líderes nazistas alemães foram corretamente levados a julgamento em tribunais internacionais, o presidente estadunidense Harry Trumann (1884-1972) que autorizou o lançamento de bombas atômicas sobre o Japão, não. É óbvio que poderoso como é, os Estados Unidos não permitiria. É utópico pensar que nações poderosas e seus líderes paguem por seus crimes contra a humanidade. Mas é um objetivo que deve ser perseguido. O mecanismo de funcionamento da ONU, em especial, do Conselho de Segurança precisa ser revisto. O combate à desinformação e à manipulação ideológica midiática é necessária e urgente. Um mundo melhor se faz com pessoas esclarecidas e críticas!

domingo, 3 de abril de 2022

A Rússia na Guerra Fria 2.0 - parte 4

 

        O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) afirmou que "A paz não é mera ausência de guerra. É uma virtude, um estado mental, uma disposição para a benevolência, confiança e justiça". Essa frase resume o que faltou aos líderes europeus e estadunidenses após o fim da Guerra Fria, afinal, a beligerância dos discursos foi sempre na contramão do que o bom senso e a inteligência recomendavam para aquele momento. Também não se pode ser ingênuo, afinal, como disse o estrategista Carl Von Clausewitz "a guerra é a continuidade da política por outros meios".  E a política que sempre norteou e norteia o pensamento europeu e estadunidense é o imperialismo.

            Vivemos um tempo surreal, a narrativa (opinião) vale mais do que o fato (real) em si. É preciso dizer também o óbvio. Digo então, (por mais ridículo que pareça precisar dizê-lo), que sou pacifista e concordo com o general estadunidense Norman Schwarzkopf, comandante da Operação Tempestade no Deserto quando disse: "Nenhuma pessoa sendo verdadeiramente inteligente pode ser a favor da guerra". Digo isso, porque em várias oportunidades ao explicar as razões que levaram à Rússia a tomar a trágica decisão beligerante  demonstrando as minhas críticas ao papel desempenhado pelos EUA e pela OTAN, pessoas pensaram que eu tinha um posicionamento favorável à Guerra, o que não corresponde a verdade.

            Lembremos que "numa guerra, a primeira vítima é a verdade" (autoria desconhecida).  A Guerra na Ucrânia está sendo uma guerra de narrativas, sendo que a mídia russa está sendo censurada e proibida de circular nos países ocidentais. Importantes meios de comunicação russos foram proibidos no Facebook  e no You Tube e isso é péssimo para a informação e para a democracia, afinal jamais se chega a verdade sem ouvir os dois lados conflitantes. Trata-se de uma agressão ao público que ouve apenas um lado (mídia ocidental), o qual não por acaso coincide com os interesses das potências ocidentais. Sobre isso o linguista, filósofo, escritor e ativista político estadunidense Noam Chomsky professorou: "O propósito da mídia não é o de informar o que acontece, mas sim de moldar a opinião pública de acordo com a vontade do poder dominante".

             Em uma guerra sabemos, o poder da narrativa é tão importante quanto o poderio militar. A Alemanha nazista tinha como um de seus grandes trunfos, a publicidade do regime conduzida pelo eficientíssimo ministro da Propaganda Joseph Goebbels, que talentoso e comunicativo, conseguiu o apoio da população alemã a um governo que conduziu aquele país e o mundo à catástrofe da Segunda Guerra Mundial. Ditadores, disso também não descuidam, Getúlio Vargas teve seu Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) para promover a publicidade do regime e a censura à notícias críticas. A mídia ocidental faz uma cobertura parcial e manipuladora da guerra na Ucrânia e contribui para a desinformação enquanto doutrina as pessoas alimentando a russofobia.

             Em geopolítica, aprende-se que não há nada mais ilógico do que o maniqueísmo. Nunca ou quase nunca é a luta do bem x mal, do mocinho x bandido. Cada nação beligerante tem a sua porção vítima e a sua porção agressora. Ingênua é a pessoa, que escolhe um lado como sendo o do bem. Não há boas intenções na guerra. Os EUA e a OTAN ganharam a oportunidade de sancionar a ascendente economia russa causando-lhe enormes danos e fornecem armamentos para a Ucrânia (possibilitando fabulosos lucros para a sua indústria bélica) a fim de estender a guerra pelo maior tempo possível com o objetivo de desgastar a principal aliada da China. O que está acontecendo é uma contestação a atual Ordem Mundial que tem o Atlântico como centro (EUA/Europa) para outra em que o poder militar e econômico (hegemonia) poderá estar no Pacífico (China/Rússia). E isso é algo que os Estados Unidos e a Europa no papel de coadjuvante tentam impedir.

            O físico Isaac Newton afirmou: "toda ação corresponde a uma reação de igual intensidade, mas que atua no sentido oposto". Obviamente, Newton se referia à física, mas, isso também vale para as relações internacionais e como exemplo, imaginemos que o Brasil tivesse mantido o projeto de construir a bomba atômica, como reflexo, a Argentina também teria mantido o seu e, ambos estariam acumulando armas nucleares apontadas para o país vizinho. A ideia da Ucrânia de solicitar a entrada na OTAN (previsto na Constituição Nacional) foi insensata, um país dependente de recursos energéticos e do comércio com a Rússia deveria manter a neutralidade, até porque a Rússia reagiria em defesa de sua segurança, porém, mais imprudente é a política da OTAN em expandir para o leste europeu, afinal, a busca da paz deve estar nas atitudes e não apenas nos discursos. A diplomacia deve superar o poder militar, sempre!