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sábado, 25 de setembro de 2021

Bolsonaro, Lula e a idolatria

 

      Há muito vejo nas redes sociais uma postagem que afirma o seguinte: "Idolatrar Bolsonaro é a mesma burrice que idolatrar Lula. Políticos devem ser cobrados e não idolatrados". O poeta, escritor, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare (1564-1616) afirmou: "O diabo é capaz de citar as Sagradas Escrituras quando isso lhe convém". A frase de Shakespeare refere-se à estratégia de recorrer a algo considerado inconteste para obter a aprovação tácita de algo polêmico por meio da não reflexão do ouvinte ou leitor. A frase em questão traz o acerto inquestionável no trecho: "políticos devem ser cobrados e não idolatrados". Sabemos que no regime democrático, os políticos são escolhidos pelo povo em sufrágio universal. Sabemos também que a democracia não funciona de forma adequada nos países com grandes desigualdades sociais (caso do Brasil), sendo sempre de baixa intensidade e nunca na forma plena.

            É importante que se diga que este país foi construído de cima para baixo com vistas a desempenhar a função de colônia e enriquecer quem consome os produtos desta terra e, não para desenvolver-se e tornar-se independente. Os ricos recursos (naturais ou do trabalho) do povo brasileiro sempre estiveram/estão a serviço do enriquecimento de potências estrangeiras e de seus testas de ferro locais (a elite do capital patrimonial) que conta sempre com o apoio da elite do capital cultural (a classe média) que se contenta em ficar com migalhas enquanto alimenta a ideia de ser "rica" e "europeia". A Independência do país (1822) e a abolição da escravatura (1888) não vieram acompanhadas da independência econômica e da ascensão social das classes despossuídas da terra e da renda, pois as cadeiras do Congresso Nacional sempre estiveram/estão majoritariamente ocupadas pela elite econômica (no passado, por barões do café, da cana de açúcar e, na atualidade, por latifundiários, industriais, banqueiros, e/ou seus representantes).

             Karl Marx (1818-1883) nos ensinou que a história das sociedades é o desenrolar das lutas de classes e, por sua vez,  Simone de Beauvoir (1908-1986), afirmou: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos", ou seja, não existe neutralidade. Há o projeto colonizatório e o emancipatório. O primeiro é defendido pelos testas de ferro brasileiros do Imperialismo Internacional, que por interesses escusos, desejam manter o país subjugado, em detrimento dos interesses genuinamente nacionais, perpetuando o atraso social. O segundo projeto é emancipatório, progressista e desenvolvimentista que visa fazer do país, uma sociedade menos injusta e mais próspera.

            É de uma maldade/ingenuidade absurda comparar Bolsonaro a Lula. Bolsonaro por suas falas e ações várias vezes demonstrou ser favorável à ditadura, à tortura, ao machismo, à misogenia, à homofobia, ao racismo, ao militarismo, ao armamentismo, à violência policial, ao entreguismo das riquezas nacionais, à uma política externa submissa aos EUA, e exerce um governo plutocrata (dos ricos para os ricos). Bolsonaro por sua ação/inação defende o latifúndio, a exploração do patrão sobre o empregado (redução de direitos trabalhistas e arrocho salarial), a destruição do meio ambiente, o descaso ou até mesmo ataques aos direitos dos povos originários. Lula representa a ideia de um Brasil que deu certo, pois retirou quarenta milhões de pessoas da miséria, aumentou o poder aquisitivo da classe trabalhadora e os investimentos em educação e saúde, pautou as relações externas no âmbito Sul-Sul e teve uma postura independente perante os EUA. Comparar os dados socioeconômicos oficiais dos governos de ambos acaba com qualquer dúvida. Enquanto Lula era recebido por reis, rainhas e o mundo o queria ouvir. Hoje, Bolsonaro nos envergonha e destrói a imagem do Brasil perante as nações. Quem ainda hoje apoia Bolsonaro, busca preservar privilégios imorais ou tem a mente colonizada. Lula é o oposto de Bolsonaro e, quem não percebe/reconhece isso, demonstra não ter honestidade intelectual, consciência de classe, capacidade de interpretação de texto e de crítica.

 P.S. A corrupção que se tentou encontrar em Lula ou nos filhos de Lula (sem sucesso), está sendo fartamente documentada nas ações do clã Bolsonaro.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Sobre os “mundoiletrados” - (republicação em comemoração dos 100 anos do nascimento de Paulo Freire)

 


           Concluí a leitura do livro “A importância do ato de ler” do sábio e saudoso mestre Paulo Freire (1921-1997), um pequeno livro em suas dimensões, porém grande pela profundidade do conteúdo que encerra. Quero dizer, portanto, que qualquer semelhança acerca do conteúdo aqui escrito com os ensinamentos do grande mestre não é mera coincidência. Paulo Freire afirma ser um absurdo os índices de analfabetismo que então às luzes do terceiro milênio a humanidade ostentava e, infelizmente ainda ostenta. Segundo Paulo Freire não basta a mera decodificação da palavra escrita, é necessária uma compreensão crítica do ato de ler, ou seja, uma leitura crítica do mundo ou a “leitura da palavramundo”. O mestre muito se preocupou com a alfabetização de adultos, mas não a mera decodificação dos símbolos gráficos, pois pregava uma revolução na sociedade cujo princípio se daria na mente das pessoas. Era necessário ir além da alfabetização atingindo o estágio de “leiturização do mundo”, ou seja, mais do que ler, entender as questões locais, regionais e mundiais para nelas interferir visando a transformação da sociedade. Mas estamos muito aquém do estágio de leiturização do mundo sendo que os números do analfabetismo ainda hoje se mostram escandalosos nos países do Sul (subdesenvolvidos) e, se a estes números acrescentássemos os malformados, a realidade seria ainda mais estarrecedora.

            A formação a que me refiro é aquela que vai muito além do ambiente escolar e que se realiza individualmente na leitura de obras de pensadores e, também na reflexão daquilo que se aprende, na leitura ou na vivência. O ser humano possui não somente o direito de ler e ser uma pessoa melhor como a obrigação de aperfeiçoar-se visando contribuir para a melhoria da sociedade. Ocorre que muitos pensam não ser necessário estudar além da educação oficial, achando a leitura um ato penoso e há aqueles que embora portem um ou mais diplomas, possuem uma visão míope de mundo, ou seja, são incapazes de fazer uma leitura fundamentada e crítica da conjuntura local, regional e mundial. Assim, falam sem ter uma argumentação consistente emitindo juízos de valor àquilo que de fato não conhecem, pois, se a alfabetização já é em si um desafio apesar da possibilidade de aprendizagem de qualquer ser humano dotado das faculdades que assim o favoreçam, compreender a “palavramundo” mostra-se algo mais difícil, pois, é preciso ter gana de viver, e vivendo, a cada dia buscar aprender mais, entender o significado das coisas e dos fatos. Compreender a “palavramundo” exige fazer comparações e só se pode comparar aquilo que se conhece pela realidade vivida, para a qual não basta viver, mas refletir sobre os fatos, bem como pela leitura, mas não como uma mera decodificação dos símbolos, mas com o objetivo de desvelar a essência daquilo que lemos, vemos e vivemos.

            Atualmente assistimos os meios de comunicação pregarem a “neutralidade” da educação e seríamos ingênuos se pensássemos que a suposta e impossível neutralidade fosse fruto do desejo ingênuo da elite representada por tais meios de comunicação. A verdade é que à elite interessa esconder a perversa essência que se esconde por trás do modelo neoliberal, como educadores, precisamos e devemos auxiliar nossos educandos a descobrir a essência da vida e não apenas servir ao modelo de produção que se apresenta hegemônico. Não é possível pensar a educação sem a reflexão da conjuntura do projeto de país que se não for pensado por todos, será pensado por alguns, pois quem não pensa é pensado pelos outros. Acredito que devemos ter mais que um discurso fundamentado na reflexão diuturna, “precisamos ter coerência entre a prática e o nosso discurso avançado”. Ao contrário do que pretendem os amantes do neoliberalismo, “o educador não tem como ser neutro, mas nem por isso é manipulador”. Cabe a nós educadores, a necessária utopia de uma sociedade melhor, mais justa, pois a utopia é oxigênio que move a busca do conhecimento por educadores e educandos que pretendem na solidariedade encontrar a saída ante um modelo autoritário, egoísta e perverso que concentra as riquezas nas mãos de poucos e a fome na barriga de muitos. Nessa realidade mundial, o Brasil também está inserido, pois, a fome mora ao lado do nosso quintal e como já afirmava o mestre “não nos esqueçamos que o Brasil foi inventado de cima para baixo” e, como tal permanece.

            Aos educadores cabe dar vida ao que se ensina, indo muito além do conteúdo, é necessário contextualizá-lo, pois “o contrário da manipulação não é a neutralidade impossível, nem o espontaneísmo, mas a participação crítica e democrática”. Precisamos passar de figurantes da história para construtores de nossa própria história, ajudar a construir uma sociedade melhor para todos os brasileiros. “Estudar é assumir uma atitude séria e curiosa diante de um problema” e estudar também é trabalho, trabalho que fortalece os “músculos” do pensar e que a todos cabe, pois “ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo”. Assim o autor destas linhas também é ciente de que muito tem por aprender e tal como afirmou o filósofo Sócrates apenas “sabe que nada sabe” e uma vez mais citando o mestre Paulo Freire quando afirmou que “estudar para servir ao povo não é só um direito, mas também um dever revolucionário”. Façamo-nos revolucionários e estudemos, pois para ajudar a construir uma nova sociedade, não importam quais sejam as suas cores, mas, a onipresença da justiça social.

Sugestão de boa leitura:

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 49 ed., São Paulo, Cortez, 2008.

sábado, 18 de setembro de 2021

Brasil: Nunca mais

 


        No dia em que escrevo estas linhas comemora-se a passagem de 100 anos do nascimento do frade franciscano, cardeal e escritor brasileiro Dom Paulo Evaristo Arns (14.09.1921 - 14.12.2016) que conquistou legiões de simpatizantes por seu enorme carisma, fé inquebrantável em Deus e incansável promoção dos Direitos Humanos. Durante o exercício de seu ofício religioso ia ao encontro das pessoas em condição de vulnerabilidade social (os excluídos da dignidade humana) que Arns, sabia ser o resultado de injustiça social e não de uma suposta meritocracia. Dom Paulo afirmava que "A paz é caminhada comum sem que ninguém fique marginalizado". Intransigente defensor dos Direitos Humanos, D. Paulo Evaristo Arns conjuntamente com o Pastor Presbiteriano Jaime Wright e o Rabino Henry Sobel estiveram à frente do projeto (Brasil: Nunca mais) que visava investigar, esclarecer, documentar e denunciar para o mundo os crimes de tortura praticados pela ditadura civil-militar (1964 - 1985).

            É importante frisar que o último período ditatorial brasileiro teve o apoio da elite econômica brasileira (empresários e latifundiários) e mesmo de parte dos religiosos (de ofício ou fiéis). Frequentar a Igreja, mostrar-se perante a sociedade como um religioso fervoroso não é prova de fé cristã, menos ainda de possuir bom caráter, afinal, Hitler também era um assíduo frequentador da Igreja. O tempo passou, com ele a escravidão e as ditaduras, porém, o mal permanece enraizado nos corações e mentes da elite econômica e da pseudo-elite (do capital cultural) que é a classe média, ambas apoiam pretensos ditadores e projetos de ditaduras. O livro "Brasil: Nunca mais" foi lançado em 1986 (logo após o fim da ditadura) e é fato raro encontrar sua versão física à venda, no entanto, ele está disponível em formato PDF na Internet. Na época de seu lançamento ele figurou entre os dez mais vendidos por 91 semanas consecutivas e teve quase 50 edições. No projeto foram colhidos mais de quinze mil depoimentos, fotografias, filmagens e toda a documentação vai a mais de um milhão de páginas. Os números reais quanto às vítimas da ditadura militar talvez jamais venham a ser conhecidos e superam muito o que foi amostrado pelo referido projeto.

            Eu adquiri e li o livro quando fazia universidade (há trinta anos) e recentemente o coloquei numa lista dos dez livros que mais me impactaram. A obra está fortemente documentada, com as fontes devidamente citadas. O texto foi redigido por Frei Betto e Ricardo Kotscho. Trata-se de um resumo que equivale a cerca de 5% do material colhido pelo projeto. A obra é dividida em seis partes intituladas: 1. Castigo cruel, humano e degradante; 2. O sistema repressivo; 3. Repressão contra tudo e contra todos; 4. Subversão do direito; 5. Regime marcado por marcas da tortura; 6. Os limites extremos da tortura. O texto traz de forma nua e crua a desumanidade do regime e dos torturadores. Explica o modus operandi dos interrogadores/torturadores para obter confissões. Há a descrição das técnicas de tortura empregadas em homens, mulheres e, pasmem, até em mulheres grávidas e crianças (filhas de presos políticos para quebrar a resistência destes). Os depoimentos falam da aplicação da droga Pentathotal conhecido como soro da verdade. Trata-se de uma droga que quebra a resistência da vítima que confessa qualquer coisa a que for induzida. Na obra a descrição das técnicas de tortura certamente impactarão as mentes de pessoas dotadas do espírito de humanidade.

            O projeto e o livro foram desenvolvidos para evitar que documentos fossem destruídos como ocorreu com aqueles referentes à escravidão destruídos por ordem de Ruy Barbosa e aos crimes da ditadura de Getúlio Vargas (por ordem deste). O objetivo da publicação do livro era de tornar público o conhecimento acerca do nefasto período vivido no país e conscientizar a população para que ditaduras e torturas jamais voltassem a ocorrer no país. O último dia Sete de Setembro (2021) mostrou que tal como Bertolt Brecht afirmou "a cadela do fascismo está sempre no cio" e que os "cidadãos de bem/cristãos" de hoje novamente condenariam Jesus à tortura e à morte! Obrigado Dom Paulo Evaristo Arns por sua humanidade e sobretudo por sua coragem!

             

Sugestão de boa leitura:

Título: Brasil: Nunca mais

Autor: D. Paulo Evaristo Arns et al.

Editora: Vozes, 1991, 26ª edição, 312 pág.

sábado, 11 de setembro de 2021

Você é cringe?

             O leitor, caso esteja habituado a frequentar as redes sociais, certamente já leu/ouviu discussões que nelas se popularizaram acerca da expressão cringe. Tendo observado tal fenômeno, algum tempo atrás, procurei saber seu significado e não dei mais atenção ao assunto. Ocorre que alguns dias atrás, um estudante me perguntou se eu era cringe e, tendo em vista que estávamos para iniciar uma prova, não respondi ao questionamento para não haver perda de tempo para a resolução da mesma. Deixo claro que ao discorrer sobre o assunto, o faço, por achar interessante sobre ele escrever, portanto, não se trata de responder a ninguém, mas, um diálogo com o amigo leitor. Cringe é uma gíria adaptada do inglês para designar alguém que é brega, vergonhoso, ultrapassado e fora de moda. Não é a primeira vez que me ocorre isso, há alguns anos, outro estudante perguntou-me sobre estilo musical e cantores de minha preferência, respondi que meu gosto musical ia do heavy metal ao pop rock e citei  bandas de rock nacional e internacional que muito aprecio, sendo que o referido estudante, verdadeiramente espantado, afirmou: " - Nossa! E eu que pensava que o professor só gostava de músicas como as do Teixeirinha." Respondi-lhe que não tinha o hábito de ouvir músicas de estilo gauchesco, nem mesmo, as de Teixeirinha (1927-1985), mas, que elas eram riquezas culturais de nosso país e, portanto, merecedoras de respeito.

            Há na literatura internacional várias obras que tratam de conflitos de gerações. Pode-se encontrar tal tema em obras clássicas de filosofia de autores gregos e até mesmo na espetacular literatura russa, ou seja, é um tema universal, pois, em todas as sociedades tal debate existe. De um lado, a juventude considera as gerações anteriores (como as de seus pais) ultrapassadas e motivo de vergonha. De outro, as gerações anteriores (os pais inclusive) questionam os valores, os gostos e a falta de compromisso das novas gerações. Sempre foi assim, lembro que meu pai se horrorizava com as músicas que eu ouvia. De minha parte, não apreciava o sertanejo raiz que ele ouvia. No momento, nas redes sociais há discussões entre a geração Z (nascida entre 1995 e 2010) e a geração dos millenials ou geração Y (nascida entre 1980 e 1995). O conflito geracional foi encurtado no tempo, pois, a geração Z considera a geração Y (pouco anterior) como adepta de atitudes cringes. Trata-se do embate filosófico entre adolescentes e jovens.

            No Japão, o maior orgulho de um adolescente é levar seus avós na escola, afinal, como têm uma idade avançada, eles têm uma experiência de vida maior. Nestas terras tupiniquins trata-se de um "mico" e não poucas pessoas consideram que o idoso atrapalha e vive demais. Nas empresas japonesas, o funcionário longevo é trocado de função, mas, permanece na empresa que valoriza sua experiência adquirida ao longo do tempo e sua contribuição dada à mesma. Em terras brasileiras, um funcionário de 50 anos é dispensado por ser velho. É importante observar, que tudo isso se refere à cultura e, como tal, está em constante mutação (nem sempre para melhor). Não há como comparar culturas diversas, cada uma está inserida em um meio social e em um processo histórico que lhe é peculiar. Vivemos numa sociedade do descartável, de casamentos descartáveis, de amizades descartáveis, de empregos/empregados descartáveis, de músicas descartáveis e de opiniões descartáveis que mudam ao sabor dos ventos, pois lhes falta essência. Enquanto a aparência das pessoas e das relações for o aspecto mais valorizado (e não a essência), a sociedade do descartável permanecerá.

            O cantor, compositor, ator e produtor musical britânico David Bowie nascido David Robert Jones (1947-2016) afirmou: "Envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido". É exatamente isso o que penso sobre mim. O tempo passou, amadureci, não me cobro mais por objetivos que não alcancei e, que hoje sei, serem inalcançáveis. Me concedo diariamente o perdão às minhas inúmeras falhas e sei que o que realmente conta é a qualidade das amizades e não a quantidade. Da juventude, sinto falta da boa forma física que um dia tive (hoje o corpo dói), mas, não da mentalidade e inseguranças. Quanto a ser cringe, se assim me consideram, lembro de Jair Rodrigues (1939-2014) quando disse: "Deixa que digam, que pensem, que falem...", afinal, como alguém já disse, "o tempo nos transforma em clássicos".

sábado, 4 de setembro de 2021

Eu acuso! A verdade em marcha

 

            

Há alguns dias resolvi ler um livro do jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador brasileiro Ruy Barbosa (1849-1923), a obra em questão "O processo do Capitão Dreyfus" condenado em fins do século XIX por espionagem e traição à pátria francesa. Ruy foi uma das primeiras vozes a perceber o que hoje conhecemos como LAWFARE, ou seja, a manipulação intencional das leis por magistrados com o objetivo de alcançar o resultado político desejado, muitas vezes contando com os meios de comunicação na divulgação das distorções jurídicas para obter apoio popular e alcançar a hegemonia do discurso na caminhada ao Poder. À época Ruy Barbosa estava auto-exilado na Inglaterra dada as condições políticas dos primeiros anos republicanos no Brasil. Ruy escrevia da Inglaterra para o Jornal do Commércio e passou a descrever o caso com suas análises sobre o mesmo, apontando os erros da Justiça Francesa.

            Ao terminar de ler o livro de Ruy Barbosa, resolvi ler a obra "Eu acuso! A verdade em marcha" do consagrado escritor francês Émile Zola (1840-1902) que ao acompanhar o caso, a sua ampla repercussão nos jornais como uma estratégia do Poder Judiciário e dos setores militares para insuflar na sociedade o anti-semitismo (preconceito ou ódio contra os judeus) e propagar uma visão nacionalista em benefício da extrema-direita francesa e, vendo uma pessoa inocente condenada, recusou-se a permanecer indiferente. Zola arriscou seu prestígio perante a população quando escreveu uma carta ao presidente francês, na qual denunciou os erros do processo e acusou os responsáveis pela sua manipulação. Publicou a carta e vários artigos sobre o caso em jornais. O caso começa com uma funcionária francesa que fazia a faxina na Embaixada Alemã em Paris. No cesto de lixo ela encontra uma carta cujo conteúdo contém informações relevantes sobre o exército francês. A funcionária entrega a carta no exército francês, instaura-se um processo investigativo e documentos com a grafia dos oficiais são analisadas por três "peritos" e se "constata" a culpa do Capitão Alfred Dreyfus, um dos raros judeus integrantes do oficialato militar francês. Num verdadeiro Tribunal de Exceção, Dreyfus é condenado apesar de insistir em sua inocência  e denunciar o caráter anti-semita  da acusação. Dreyfus é enviado à penitenciária da Ilha do Diabo (Guiana Francesa), famosa pela péssimas condições ofertadas aos presidiários (tortura e terror) da qual muitos não voltam vivos. Em 1897, dado o clamor dos intelectuais e de parte da imprensa, a imagem da França está arranhada ante o mundo. Visando salvar suas imagens, o Estado Francês, o Exército e a Justiça resolvem dobrar a aposta mantendo a farsa e operando um contorcionismo jurídico que não acolhe as provas da inocência de Dreyfus e da culpabilidade do Comandante Esterhazy. A condenação é mantida.

            Émile Zola encabeça uma lista de intelectuais que são jogados contra a opinião pública e inclusive processados, multados e condenados pela Justiça ao defender que se faça a justiça com o devido respeito ao processo legal e com o acolhimento das provas de inocência do réu e que se reconheça o erro, absolvendo-o e que se processe Esterhazy. Em 1899, o Estado Francês pressionado, concede a anistia a Dreyfus (sem reconhecer sua inocência e sem devolver seu cargo). Em 1902, Émile Zola que publicou vários artigos em jornais denunciando a fraude judiciária (para quem a anistia não era suficiente) é encontrado morto por asfixia, sua morte nunca foi esclarecida e, acredita-se que tenha sido obra de militantes da extrema-direita. Somente em 1906, a inocência de Dreyfus é reconhecida juntamente com a culpabilidade de Esterhazy. Dreyfus, enfim, recupera seus direitos e seus galardões. Esterhazy, o traidor, foge para a Inglaterra e lá vive até o fim dos seus dias.

            O caso Dreyfus é talvez o primeiro grande caso de Lawfare cuja popularização atravessou as fronteiras do país no qual ocorreu. O Brasil também tem um caso Dreyfus para chamar de seu, a condenação ilegal do ex-presidente Lula por meio de LAWFARE pelo ex-juiz Sérgio Moro. Tanto lá (na França) como cá, ficou provado que muitas vezes, a Justiça tem lado e nem sempre é o do verdadeiro Direito.

Sugestão de boa leitura:

Título: Eu acuso! A verdade em marcha.

Autor: Émile Zola.

Editora: L&PM, 2009, 176 pág.