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sexta-feira, 23 de março de 2018

Em tempos de pós-verdade


            Raul Seixas foi um fenômeno do rock nacional, tanto que muitos jovens nascidos após sua morte apreciam suas músicas, muitas feitas em sentido figurado para passar pelo crivo do nem sempre inteligente censor para assim poder ser gravada e passar seu recado às ruas. Em Cowboy fora-da-lei, no entanto, ele foi direto, pois a democracia havia sido restabelecida após 21 anos de ditadura. Na letra o cantor e compositor afirma [...] eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz! E este é o drama da sociedade que vivemos em que os grandes grupos de comunicação televisiva e escrita culpam a Internet pela disseminação de notícias falsas, no que estão parcialmente corretos. Pois, considerar que apenas com o advento da Internet, as notícias falsas começaram a atrapalhar a vida de quem busca informação de qualidade é uma mentira ainda maior, basta lembrar as campanhas eleitorais passadas em que candidatos lançaram mão de boatos como verdadeiras bombas atômicas para anular seu adversário sem que este tivesse tempo hábil para desmentir ou acionar a justiça eleitoral tendo em vista ser véspera da eleição. O ex-ceo da Globo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (o Boni) admitiu que a Globo trabalhou ativamente para eleger Collor. Conta que manipulou o último debate entre Collor e Lula ocorrido durante a madrugada e levado ao ar no dia seguinte editando os melhores momentos de Collor e os piores momentos de Lula. Nesta eleição, o último programa de Collor na antevéspera da eleição lançou mão de um boato acerca de Lurian (filha de Lula). E Collor ganhou a eleição que muitos já apontavam a vitória de Lula.
            O saudoso Umberto Eco afirmou: “a Internet deu voz a uma legião de imbecis”, mas, acreditar que a mídia tradicional é imparcial, incolor, insípida, inodora, portanto desprovida dos interesses da classe dominante que ao fim e ao cabo representa, inclusive por dela fazer parte, é ser mais imbecil ainda. O intelectual estadunidense Noam Chomsky que possui várias dezenas de livros publicados e inúmeros prêmios internacionais, afirma com exatidão “o papel da mídia não é informar o que acontece, mas moldar a opinião pública de acordo com a vontade do poder corporativo dominante”. A palavra “pós-verdade” surgida em 1992 tem em 2016 seu boom. Passa a ser citada em artigos e palestras de pesquisadores renomados, bem como se torna tema de livros. A expressão pós-verdade não se refere à mentira em si, mas, a ilações que obscurecem a verdade tornando-a desimportante ou indiferente. “Não importa o que seja a verdade, opinião por opinião eu tenho a minha ou escolho aquela que mais me agrada”. Não há a busca, a leitura, a investigação reflexiva. O sujeito vai à prateleira do “supermercado midiático” e escolhe o produto que mais lhe agrada sem analisar se aquele produto é falso ou original, se cumpre o que promete, ou vai lhe fazer ter vergonha de um dia tê-lo comprado mesmo que num mea culpa solitário e que a sociedade jamais vai saber tê-lo feito, pois, caráter segundo alguns é nunca reconhecer o erro, mesmo que isso se torne evidente. Embora a pós-verdade seja utilizada também pela esquerda, é na direita o campo fértil da boataria, da indiferença à realidade dos fatos, até porque o público da direita não é muito afeito à leitura, à reflexão. Os boatos envolvendo o filho de Lula que seria o dono da JBS-Friboi, da Havan, etc. estão aí para comprovar e muitos acreditam, não por serem ingênuos, mas, de má-fé mesmo, lhes faz bem pensar maldosamente e propagar a maldade. São almas tortas e de suas bocas sai apenas o ódio, a maldade.
            Em momento oportuno, o livro “Ética e Pós-verdade” que conta com artigos de Christian Dunker, Cristovão Tezza, Julián Fuks, Marcia Tiburi e Vladimir Safatle lançado em 2017 pela editora Dublinense aprofunda a discussão sobre a pós-verdade e temas conexos. Trata-se de uma obra essencial para entender a sociedade pós-moderna, principalmente para pessoas como eu, que possuem as raízes firmemente plantadas no século XX e em tudo o que ele representou e representa na ordem atual do mundo. Li e recomendo!

Sugestão de boa leitura:
Ética e pós-verdade. Christian Dunker [et all], Ed. Dublinense, 2017.

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