sábado, 17 de maio de 2014
Deixa que digam que pensem que falem...
Impossível ler o título deste artigo e não lembrar imediatamente do “vovô garotão” Jair Rodrigues que infelizmente esta semana deixou este plano em que de tanto cantar e encantar a todos por onde passava encantou a si mesmo e não pode mais chorar e condenado a sempre sorrir sorrindo viveu, desfilou pela vida e quando pensávamos que seu sorriso era eterno repentinamente se foi, por mais que sua obra e seu talento sejam considerados completos Jair foi um daqueles gênios da música que ouvir cantar nunca era o bastante e lamentavelmente a cortina do espetáculo baixou e por mais que peçamos bis com aplausos ininterruptos ele não voltará para mais uma palinha, nos dando a impressão que alguma coisa faltou e também que em termos de música de boa qualidade estamos ficando cada vez mais sós, o andar de cima está cada dia mais reforçado e quando penso que muitos dos grandes ícones da música de boa qualidade já estão vivendo o quarto final de suas vidas, penso que não devemos perder oportunidades de assistir seus shows, pois, embora o show deva continuar o artista inevitavelmente um dia deixa o palco vazio.
Emociono-me quando assisto a sua apresentação no festival de 1966 interpretando “disparada”, genial letra de Geraldo Vandré, o autor da não menos genial “Prá não dizer que não falei das flores”, ambas as letras tornaram-se hinos cantados pelas multidões que assaltados do direito de expressar sua opinião pelos usurpadores da democracia que se instalaram num certo dia 1º de Abril e que fizeram do terrorismo de Estado a ordem do dia e contra toda a dor e desencanto que um grupo de lunáticos estabelecidos no Poder estavam causando, Jair seguiu cantando, sorrindo e amenizando o sofrimento presente em todo lugar. É tarefa difícil escolher uma estrofe de “disparada” para citar neste artigo, pois, “disparada” é toda genialidade e ganhou a eternidade na interpretação inigualável de Jair Rodrigues, pois, embora outros cantores a interpretassem maravilhosamente após 1966, ninguém colocou tanto a alma e o coração nessa letra quanto ele. A música começa pedindo para prepararmos o coração, justamente o coração que levou Jair embora: “Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar / Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão / Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar / Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar / E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo / Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar” e em outra estrofe: “Então não pude seguir valente em lugar tenente / E dono de gado e gente, porque gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente / Se você não concordar não posso me desculpar / Não canto prá enganar, vou pegar minha viola / Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”. Jair, não teve vida fácil, ralou muito, foi engraxate, mecânico e pedreiro, serviu também o Exército, foi cantor de boate e artista completo desfilou nos palcos da MPB, do samba e até da música sertaneja em que interpretou brilhantemente a música “A Majestade, o Sabiá” cuja composição é de Roberta Miranda.
Vivemos num tempo em que não são poucas as pessoas que se ocupam mais da vida alheia do que cuidando de seus próprios interesses, o que faz com que as pessoas que menos apreciam-nos serem as que mais prestam atenção a tudo o que fazemos, escrevemos e dizemos. É uma triste época, ninguém escapa aos rótulos, se faz algo bom tem algum interesse embutido nessa boa ação ou quer se aparecer, pois, na mentalidade mercenária que domina a cabeça de muitos não se concebe que outras pessoas possam pensar diferentemente e agir visando algo que não a satisfação própria. Se defender vigorosamente os fundamentos que balizam o seu pensamento é um radical, e se pensa diferente é um revoltado da vida mesmo quando aqueles que criticam ingerem senso comum e vomitam reacionarismos fascistoides. Para todas as pessoas que sofrem com os rótulos deixo como dica a estrofe inicial de “Deixa isso prá lá” interpretada por Jair Rodrigues. “Deixa que digam / Que pensem que falem / Deixa isso prá lá / Vem pra cá / O que é que tem? / E eu não tô fazendo nada / Nem você também / Faz mal bater um papo / Assim gostoso com alguém?”
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