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domingo, 25 de dezembro de 2022

Vidas à deriva


 Há uma velha máxima de que os livros são sempre melhores que suas adaptações para o cinema. Vidas à deriva cujo título original é "Adrift" (Á deriva) é mais um exemplo disso. Li o livro há algum tempo e gostei muito, porém, não o resenhei neste espaço. Com a chegada das férias e, a vontade (necessidade) de distensionar a mente, ao ver o catálogo da Netflix, lá estava o filme inspirado na tragédia vivida pela estadunidense Tami Oldham Ashcraft (autora do livro), imediatamente comecei a assisti-lo.

            A mãe de Tami lhe deu à luz com apenas quinze anos de idade, por essa razão, Tami foi criada pela avó, afinal sua mãe não tinha maturidade suficiente para a empreitada materna. Apesar disso, Tami sempre teve contato com sua mãe. Após cursar o Ensino Médio (High School) nos Estados Unidos, Tami contrariando sua mãe, resolveu não ingressar na Universidade, optando, por virar mochileira e, juntamente com uma amiga saiu à deriva, ou seja, sem rumo certo em uma kombi usada, por ela adquirida. Tami e sua amiga foram até uma praia onde acamparam. Nesta praia tomou conhecimento de uma oferta de emprego de um veleiro cujo proprietário precisava de tripulantes e não exigia experiência. Após uma conversa franca onde ela deixou claro que sua relação com ele seria apenas profissional, aceitou a função de cozinhar e fazer vigia, fez uma viagem de teste de dois dias e, feito isto, velejou com Fred (o proprietário do barco) rumo à Polinésia Francesa. Segundo a autora, Fred foi sempre um cavalheiro.

            O termo à deriva ou, nas palavras de Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar, vida leva eu" resume a vida de Tami. Sempre se inserindo em veleiros como tripulante, sem um rumo certo para ir mas, com o único objetivo de não voltar para casa, pois, embora ocasionalmente falasse com sua mãe, a relação entre elas não era muito boa.  No Taiti, Tami conhece o velejador inglês Richard e, eles se apaixonam à primeira vista. Iniciam um namoro, porém, após alguns dias Richard recebe uma tentadora proposta financeira de um casal de idosos que pretende voltar para os Estados Unidos de avião e precisa que alguém conduza o veleiro de volta. Ante a recusa de Tami, em seguir junto, Richard cogita desistir da missão, porém, em troca de duas passagens aéreas de volta para o Taiti e dinheiro suficiente para navegar com Richard durante um ano, ela acaba cedendo.

            O casal, apesar dos esforços, para fugir, acaba sofrendo a ação de um furacão de nível 4 que produz sérias avarias no veleiro, inclusive quebrando o mastro. No filme, como também no livro, há a intercalação de momentos anteriores à tragédia e aqueles em que a única preocupação era conseguir chegar a algum lugar e sobreviver. O livro traz relatos diários das atividades e pensamentos da autora determinada a não morrer por sede ou fome no gigantesco Oceano Pacífico. A aparelhagem do veleiro estava estragada, não havia como se comunicar. A parte interna do barco havia se convertido em uma piscina, Tami teve que bombear manualmente a água para fora do barco. A velejadora improvisou uma vela e, com os instrumentos de navegação rudimentares que tinha à mão, sextante e relógio, tentava chegar ao Havaí. A cada novo dia, calculava onde estava e corrigia a rota. Olhava o horizonte com binóculos e nada encontrava. Os dias iam passando (foram quase cinquenta dias à deriva). Quando, enfim, passou um navio, seus tripulantes não viram os sinais de localizador por ela disparados. O motor do veleiro (sim, veleiros transoceânicos têm motor para situações de emergência, porém, para trajetos curtos) também não funcionou.

            Tami, que era vegetariana, se viu obrigada a comer carne de peixes (crus), os quais teve que conseguir por meio de caça submarina. Isso se deu quando as provisões de enlatados (para situações de emergência) acabaram. O drama por ela vivido, no livro prende a atenção e leva o leitor a querer saber o que acontecerá a cada novo amanhecer. No filme não funcionou tão bem, pois, apesar de não ser um filme ruim, não empolga. Nas páginas finais do livro, a autora fala para uma de suas filhas uma frase emblemática: "A vida é como velejar, algumas vezes com vento a favor, noutras com vento contrário". Movido pela curiosidade, fui procurar como os barcos à vela navegam com vento contrário e aprendi que precisam ajustar as velas e fazer manobras, ora para estibordo (lado direito do rumo da embarcação), ora para bombordo (lado esquerdo). Assim é a vida, muitas vezes traçamos uma linha reta para atingir nossos objetivos, mas, os ventos contrários podem nos fazer desistir ou, usar da persistência, manobrando e mesmo que lentamente alcançar a meta! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Vidas à deriva: A história real que deu origem ao filme.

Autor: Tami Oldham Ashcraft.

Editora: Astral Cultural, 2018, 271 pág.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Riacho Doce

 

O paraibano José Lins do Rego (1901-1957) se popularizou como um romancista da decadência dos senhores de engenhos e tinha como característica escrever com grande agilidade, apesar de dizer a todos que o ato de escrever era difícil. A matéria-prima de suas obras estava nas memórias e reminiscências (vividas e internalizadas pela transmissão oral por seus predecessores) de um sistema econômico de origem patriarcal, com o trabalho semi-escravo do eito, ao lado de outro aspecto importante da vida nordestina, o cangaço e o misticismo. O conjunto de sua obra pode ser classificado em três tópicos: 1. O ciclo da cana-de-açúcar, com Menino do Engenho, Doidinho, Banguê, Usina e Fogo Morto; 2. O ciclo do cangaço, misticismo e seca, com Pedra Bonita e Cangaceiros; 3. Obras independentes com ligações nos dois ciclos: O moleque Ricardo, Pureza e Riacho Doce; e desligadas dos ciclos: Água-mãe e Eurídice. Sua carreira como literato o lançou à “imortalidade” como membro eleito da Academia Brasileira de Letras – ABL. José Lins tentou produzir obras desligadas dos temas que o popularizaram, porém, como assinalou Manuel Bandeira: “era um motor que só funcionava bem queimando bagaço de cana”.

A obra Riacho Doce (1939) é dividida em três partes. A primeira parte tem como personagem principal, Ester, a professora de Eduarda, uma melancólica adolescente sueca que alimentava sonhos de liberdade. Eduarda apelidada carinhosamente de Edna, não gostava do frio da Suécia, seu país natal. Sonhava com uma terra de clima quente e de paisagens verdejantes. A jovem não gostava da submissão a que era submetida por sua família no que concerne à educação e à religião, principalmente por parte de sua avó Elba. Edna também detestava o trabalho no sítio da família no qual vivia. A adolescente pensava que merecia algo melhor do que casar e continuar a viver cuidando de animais numa propriedade rural. Ester abre os olhos e a mente de Eduarda, para a vida e para o mundo. A menina se encanta pela professora, a quem considera a pessoa mais linda que já viu. Ester não é loira e de pele alva como todas as pessoas que Edna conhece e, se parece com uma boneca espanhola que tanto gostaria de ter, mas que pertence a uma de suas colegas de classe. A professora Ester se interessa pela adolescente no sentido de auxiliá-la a passar por tais problemas existenciais, porém, Edna vê em Ester o objeto do maior sentimento que um dia já teve. As pessoas da pequena vila não demoram a perceber que algo "estranho" permeava a relação entre as duas e reage. A professora é demitida e volta para a sua terra de origem. Edna sofre com sua ausência.

Eduarda cresce e se casa com Carlos, um jovem engenheiro do setor de petróleo que, querendo ganhar muito dinheiro e, também dar à esposa a possibilidade de morar em terras tropicais brasileiras, antigo sonho desta, resolve aceitar uma proposta de trabalho em uma perfuração de poço de petróleo em Riacho Doce (na verdade, uma praia de Maceió) no estado de Alagoas. Riacho Doce é o título da segunda parte do livro. Após semanas de travessia marítima, o casal chega à Riacho Doce e é instalado em uma grande e bela casa. Edna conta com funcionárias para os afazeres domésticos, portanto, dorme até tarde e, passeia pela praia, mergulha no mar, enquanto Carlos passa o dia fora de casa trabalhando. A sueca, chamada pelas outras mulheres de forma desdenhosa de "galega", talvez com um certo sentimento de inveja pelo fato de que a bela loira chama a atenção dos homens do local. Eduarda, no entanto, olha a todos e todas com ar de superioridade e, apesar de adorar Riacho Doce, seu clima, praia e mar, continua insatisfeita com a vida. Edna casou-se com Carlos sem amá-lo, movida unicamente pelo desejo de fugir da vida que levava no sítio de sua família. O casal não vive bem, Carlos ama Edna, porém, esta evita tanto quanto possível ter relações sexuais com ele. Ela sente nojo dele, odeia ser por ele tocada. A jovem esposa sueca passa seus dias contemplando a natureza na praia, nadando e nos momentos em que se encontra em sua casa, ouvindo e tocando instrumentos musicais.

A terceira parte do livro tem por nome "Nô", trata-se de um jovem nativo, considerado muito belo pelas mulheres, sendo que muitas perderam a cabeça por ele, no entanto, ele se relaciona com elas, sem jamais se apaixonar por nenhuma. Nô é o "sonho de consumo" de mulheres solteiras e também das casadas. O rapaz é neto de "Mãe Aninha", uma líder espiritual nativa que faz benzimentos, rezas e que atrai até mesmo uma certa antipatia dos sacerdotes religiosos pelo papel que exerce e no qual tem mais influência que estes. Mãe Aninha "fechou" o corpo de Nô contra qualquer mal, seja, disparos de arma de fogo, golpes de faca e, até mesmo, o amor por uma mulher. Nô, segundo sua avó jamais se apaixonaria, mulheres seriam apenas para sua diversão, pois, o neto jamais desviaria do caminho traçado por esta. Nô é também oprimido pelo fanatismo religioso da avó a quem é submisso e crédulo. No entanto, Edna e Nô se conhecem, e apaixonam-se à primeira vista. Tornam-se amantes e numa vila pequena,  nada passa despercebido. A "Mãe" Aninha torna a vida de ambos um inferno, mas, sempre potencializando seus ataques com seus poderes místicos (ou não) à jovem mulher sueca. O sentimento que une os dois belos jovens é uma explosão de desejo, portanto, incontrolável e isso ameaça a paz da localidade conduzida à mão firme pela conservadora e religiosa "Mãe" Aninha. Fico aqui para não dar spoiler! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Riacho Doce.

Autor: José Lins do Rego

Editora: José Olympio, 2011, 304 p.


domingo, 4 de dezembro de 2022

Do que vivem os homens?


 Costumo dizer que não tenho compromisso com o erro, dessa forma estou sempre disposto a mudar de posicionamento, caso eu obtenha novos conhecimentos teóricos ou experimentais que assim me convençam. Prova disso são essas linhas que parecem distantes, mas, são de um artigo deste ano: '[...] Não tenho a predileção pela leitura de contos, menos ainda de resenhá-los neste espaço. Gosto de obras com maior número de páginas para nelas fazer uma imersão". Tendo reservado parte de meu tempo para um novo curso de pós-graduação, optei por leituras mais leves e menos extensas, deixando de lado os calhamaços (livros com mais de quinhentas páginas). Resolvi dar oportunidade aos livros de contos, que são leituras rápidas, tendo como objetivo o relaxamento, a descontração. E eis que peguei o gosto pela leitura de contos, talvez tenha ajudado o fato de ter me debruçado sobre as produções literárias do russo Liev Tolstoi (1828-1910). Tentei também as HQ's (histórias em quadrinhos), mas não funcionou.

            Tenho o hábito de utilizar camisetas estampadas com frases literárias ou críticas de autores e obras. Uma delas dizia o seguinte: "Era tão pobre, mas tão pobre, que só tinha dinheiro". Alguns estudantes me perguntaram: "como uma pessoa pode ser pobre, se tem dinheiro?" Expliquei que uma pessoa pode ter dinheiro, mas, pode ser pobre de cultura, de educação, de honestidade, de solidariedade, de fraternidade, etc. Certa vez entabulei uma conversa com um empresário da capital do estado (Paraná), disse a ele que não tinha uma piscina em minha casa, mas, que tinha uma biblioteca (o que, em meu ver, é algo muito mais importante) e que nunca tive e não tenho ambição por dinheiro, basta-me ganhar o suficiente para ter algum conforto material, mas, não propriamente esbanjar ou viver luxuosamente. O empresário disse que eu era pobre até nos pensamentos e passou a falar sobre a piscina que tinha em sua casa e, também sobre as viagens que o dinheiro lhe proporcionava. Penso que a frase da camiseta é acertada, a pobreza não é apenas a resultante da falta de recursos financeiros, da mesma forma, a riqueza não se encontra apenas na acumulação do vil metal. Lembro que uma vez conversei com uma ex-empresária de minha cidade, a qual largou os negócios e passou a viver melhor após ter se conscientizado que caixão não tem gaveta (para levar dinheiro).

            Com tais palavras, não digo que ter dinheiro é desimportante, mas, que viver para acumulá-lo (sem viver) é escravidão e, escravos costumam ser pobres, de uma forma ou de outra. Mas, como diria Odorico Paraguaçu de "O Bem Amado" da obra de Dias Gomes (1922-1999), "Vamos botar de lado os entretantos e partir logo pros finalmentes". No conto "Do que vivem os homens?" de Liev Tolstói, o humilde sapateiro Simon, sai para fazer cobranças referentes a trabalhos prestados em seu estabelecimento e obviamente não quitados. Antes de sair, ele pega o pouco dinheiro que possui em casa, com a intenção de juntá-lo ao que arrecadar com as cobranças e, comprar peles para que sua esposa faça casacos, com os quais possam suportar melhor o duro inverno russo. Simon, não tem tido dias fáceis, com seu trabalho, tem conseguido apenas o suficiente para comprar alimentos. As roupas de frio dele e de sua esposa estão em estado deplorável. Ela vive reclamando da falta de dinheiro para fazer frente a outras necessidades. Ocorre que os devedores também estão passando por dificuldades financeiras e, Simon não consegue juntar o valor necessário. Aborrecido e humilhado pela situação de pobreza, sem coragem de voltar para a casa e dar a má notícia para a esposa. Antevendo as reclamações desta, ele entra num bar e se embriaga e, ao sair observa que volta para casa com menos dinheiro do que quando saiu. No caminho, já na madrugada, encontra um homem (quase congelado) deitado no chão e praticamente sem roupas, imediatamente, passa para ele seu casaco puído e o leva para casa, não sem imaginar as broncas da esposa, quanto ao fato de levar um estranho para dar hospedagem e alimentação num lar onde o alimento que há é pouco até para os que nele habitam. Paro aqui, para não dar spoiler! Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Do que vivem os homens?

Autor: Liev Tolstói.

Editora: E-Book Kindle, 2020, 33 pág