Neste período de férias nada melhor para a distração do que uma leitura leve para possibilitar descanso à mente. Neste sentido, a obra biográfica “Entre sem bater: a vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé”, escrita por Claudio Figueiredo é uma boa opção. O Barão de Itararé se tornou personagem folclórico nacional devido às suas famosas frases cuja criticidade destoava do comum por seu tempero humorístico. O livro em questão discorre não apenas acerca de sua vida e obra, mas, também da sociedade em que viveu trazendo à reflexão importantes fatos históricos nacionais.
Fernando Apparício Brinkerhoff Torelly, filho de João da Silva Torelly e de Maria Amélia Binkerhoff nasceu em 29 de Janeiro de 1895 e embora o povo gaúcho afirme que ele nasceu no Rio Grande do Sul como constava em seu título de eleitor, sua família conta que ele nasceu no Uruguai dentro de uma diligência a caminho da fazenda do avô materno localizada naquele país. A mãe suicidou-se aos 18 anos de idade quando Apparício contava 18 meses de vida. Órfão de mãe, seu pai o enviou ao Uruguai para ser criado pelos avôs maternos, porém, anos mais tarde observou que o menino fluente em espanhol tinha dificuldades na pronúncia da língua portuguesa. Resolveu então enviá-lo a um internato jesuíta em São Leopoldo (RS), na região do vale do Rio dos Sinos, onde ficou até completar o que hoje conhecemos como Ensino Médio. Apparício podia ver seus familiares apenas por ocasião da entrega de boletins que ocorria duas vezes por ano. No colégio jesuíta, considerado o melhor da região e para onde iam os filhos da elite de Porto Alegre, Torelly se destacou com seu humor e durante todo o tempo que permanecia no palco em apresentações teatrais fazia rir a platéia formada por padres e estudantes. Era também atleta e jogou como centro-avante da equipe do colégio jesuíta contra o Sport Club Internacional de Porto Alegre (então recém criado), ocasião em que venceram o então futuro maior adversário do Grêmio pelo placar de 4 x 2.
Ao concluir os estudos no colégio, foi convidado pelos padres jesuítas a prosseguir os estudos com o objetivo de ingressar na congregação tendo em vista que os padres afirmaram ver nele vocação religiosa, tal convite foi para Apparício uma surpresa, pois, jamais havia pensado em tal possibilidade. Parte da surpresa se devia a seu comportamento na escola, sempre irreverente para irritação dos mestres, motivo que o levava a crer que os padres ansiavam por sua saída daquele estabelecimento. Apesar de não aceitar o convite manteve grande carinho pelos padres jesuítas durante toda a vida. O jovem Torelly tinha inclinação para as letras, mas, sua família gostaria que estudasse Direito enquanto seu pai queria vê-lo formado em Medicina. Optou por Medicina e para cursar mudou-se para Porto Alegre. O pai, fazendeiro pecuarista de Rio Grande mandava recursos para custear suas despesas todo início de mês, mas, Apparício torrava o dinheiro em poucos dias com bebidas e mulheres, e, então tinha grandes dificuldades para passar o mês. Faltava muito às aulas, e quando presente, alguns professores se recusavam a ministrar as aulas por conta de seu comportamento. Em certa ocasião, um professor após lhe fazer várias perguntas e não conseguir dele a resposta certa pediu que trouxessem um fardo de alfafa e Torelly emendou: “e para mim, um cafezinho”.
Certa vez o professor perguntou a Apparício o que era um protozoário e ele deu a seguinte resposta: “um protozoário é um bichinho muito pequeno que se enxerga no microscópio”. O professor insatisfeito com a resposta muito simplista, perguntou se não poderia responder em nível mais adequado e ele não se fez de rogado e dando ênfase em sua fala disse: “um protozoário, preclaro mestre é um animanúnculo tão minúsculo que só pode ser observado através de lentes côncavo-biconvexas e à luz meridiana. É um ser tão inferior que parece sentir-se à vontade chafurdando na lama das sarjetas”. As ocasiões que os mestres inquiriam Apparício eram sempre momentos ansiosamente aguardados pela classe que não parava de rir. Torelly abandonou a faculdade de medicina no quarto ano, apesar disso, jamais perdeu seu interesse pela ciência chegando a investigar a febre aftosa que acometia o gado bovino, e, apesar de jamais ter conseguido sucesso na descoberta da vacina preventiva, seus estudos foram promissores e apontaram novos caminhos para os pesquisadores.
Apparício contou que certa vez acompanhou um prefeito do interior até a capital juntamente com outro político, e lá pediram verbas para o município, afinal, o governador recebeu grande número de votos naquela localidade, o governador atendeu ao prefeito, seu cabo eleitoral, entregando dinheiro em espécie e dando ordens para o secretário da fazenda que ajustariam depois a contabilidade referente ao dinheiro. O trio feliz resolveu parar num restaurante e comemorou tomando champanhes caríssimos, até que alguém disse que eles estavam num dia de sorte e convidou-os a ir ao cassino. Às três horas da manhã se deram conta que tinham perdido todo o dinheiro destinado ao município. No quarto de hotel, o prefeito ameaçava se matar com um revólver e dizia que os dois colegas levariam o corpo para ser sepultado. Apparício então afirmou: o senhor foi tão eficiente em conseguir o dinheiro, vamos voltar lá e conversar com o governador. Voltaram e contaram ao governador que impediram que seu amigo prefeito se suicidasse por conta da burrada que fizeram, e, com pena do trio, o governador deu ordens para o secretário da fazenda que contrariado os atendeu. Saíram e resolveram comemorar, porém com a condição que fosse apenas alguns champanhes, porém, depois já sob a ação do álcool, alguém que à custa do trio bebia disse: hoje é um dia de sorte, que tal irmos ao cassino? E tudo se repetiu, pois, às três horas já estavam lisos. E na madrugada, novamente o prefeito fazia sua lamentação e recomendações para seu enterro, quando Apparício inferiu: O senhor foi tão eficiente nas duas vezes, vamos lá falar com o governador e contar a situação. O prefeito perguntou se ele acreditava haver alguma chance de êxito e Torelly respondeu: “prefeito: quem dá duas, dá três”. Foram ao governador que pasmo ouviu novamente a mesma história, resolveu atendê-los, mas, impôs uma condição: um funcionário do governo os acompanharia até a estação de trem e somente entregaria o dinheiro quando estivessem embarcados e o trem estivesse partindo, e assim foi feito, desta vez com sucesso.
Após desistir da faculdade de medicina, Apporelly (como assinava seus artigos) passou a escrever para vários jornais no Rio Grande do Sul. Casou-se, teve filhos, mas teve um affair com a sogra, cuja descoberta obrigou-o divorciar-se e ir embora. Mudou-se então para o Rio de Janeiro. No Rio, escreveu colunas em jornais como O Globo e A Manhã. Logo montou seu próprio jornal intitulado “A Manha” com o subtítulo: “Quem não chora não mama”. Jamais deixou de trocar correspondências com sua ex-sogra e eterna paixão e nestas compartilhava confidências não escondendo nem mesmo seus relacionamentos fugazes com as mulheres cariocas resultantes da vida boêmia que levava na capital federal. Anos mais tarde, o casal passaria a viver juntos, pois, sua ex-sogra se separou do marido e foi ao seu encontro no Rio de Janeiro. Porém, após quatro anos, adoentada morreu e deixou Torelly solitário e único responsável pela criação dos três filhos do primeiro casamento. Certa vez, adoentado falou: “As duas cobras que estão no anel do médico significam que o médico cobra duas vezes, isto é, se cura cobra, e se mata cobra”. Noutra ocasião afirmou que “o banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro”. Defendia o voto secreto, pois, somente assim o eleitor poderia votar em seu candidato sem ficar envergonhado perante a sociedade. Questionado sobre o que era a adolescência afirmou: “Adolescência é a idade em que o garoto se recusa a acreditar que um dia ficará tão cretino como o pai”. Apporelly foi preso e espancado pela polícia política de Vargas (1930-1945), ao ser libertado, mudou o cartaz que havia na porta de sua sala no jornal e que continha a frase: “bata antes de entrar” por outro com a frase: “entre sem bater”.
Torelly farsescamente se intitulou Barão de Itararé inventando até mesmo um brasão e a história de sua “nobreza”. Jamais escreveu um livro, apesar de ser muito admirado por sua cultura, não era disciplinado suficientemente para tal. Nunca enriqueceu e quando esteve em boa situação financeira vivia como se milionário fosse com direito até a motorista particular. Jamais entrou para a Academia Brasileira de Letras, aliás, com as constantes gozações concernentes aos “imortais” publicadas em seu jornal jamais se elegeria. No entanto, ainda em vida foi homenageado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e depois de sua morte (27 de Novembro de 1971) pela própria Academia Brasileira de Letras.
Sugestão de boa leitura:
Entre sem bater: a vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé. Ed. Casa da Palavra, 2012.
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