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sábado, 30 de março de 2024

De que lado você está?

 


            O grande intelectual socialista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) viveu apenas 46 anos e mesmo assim, parte desse curto tempo de vida como preso político. No cárcere registrou suas reflexões que mais tarde foram revisadas e publicadas formando uma imprescindível contribuição para o intelecto humano. Sua obra aponta caminhos a serem trilhados por todos aqueles que desejam uma educação crítica e formadora de lideranças prontas a desempenhar o protagonismo num mundo pensado e organizado pela burguesia e para a burguesia, sendo que esta reserva ao andar de baixo da sociedade, papel meramente figurativo.

            Gramsci em sua poesia “Odeio os indiferentes” afirmava que viver é tomar partido. Em nossa sociedade existem pessoas que procuram ser palatáveis aos diversos segmentos ideológicos. Eu, porém, não ligo a mínima em ter a aceitação de grupos e pessoas cujos ideais não comungo e quero ser lembrado como uma pessoa que sempre deixou claro aquilo em que acreditava, e, que jamais surfou a onda do oportunismo.

            Há alguns dias, como sempre faço, quando me encontro em centros maiores, percorri as livrarias em busca de livros, e eis que me vejo diante de um título sugestivo “De que lado você está?” de autoria de Guilherme Boulos e, na contracapa li a seguinte frase extraída de um de seus artigos no livro: “Jesus, se vivesse hoje, estaria ao lado dos direitos sociais e humanos. Estaria com os sem-teto e os sem-terra, com os negros, os imigrantes, as mulheres violentadas e os homossexuais vítimas de preconceito”.

            Em seguida, nova frase: “a corrupção no atacado é o verdadeiro problema. A burguesia brasileira pede um Estado mínimo e enxuto para o povo, mas, desde sempre teve para si um Estado máximo. Privatizar os lucros e socializar o prejuízo, esta é a sua diretriz”. E penso: Impossível deixar a obra na estante dessa livraria!

             O livro é uma coletânea de vários artigos de Boulos para a sua coluna semanal na Folha de São Paulo. A obra é impecável e assim como ataca a direita entreguista também aponta as falhas dos governos petistas e sua inoperância quanto à realização de reforma estruturais tais como: a reforma urbana, a reforma agrária, a reforma política, a reforma tributária, a reforma dos meios de comunicação e a reforma do sistema financeiro.

            Boulos que contava apenas 33 anos, era dirigente do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), militante da Frente de Resistência Urbana, professor de filosofia formado pela Universidade de São Paulo, especialista em psicanálise e atualmente faz pós-graduação em psiquiatria. Seus artigos empolgam pela lucidez, criticidade e independência.

            Vários de seus artigos poderiam ser aqui mencionados, porém, isto é inviável, volto então ao artigo “Natal sem hipocrisia” em que fala sobre os motivos que fizeram Jesus ser tão odiado pelos poderosos da época: “[...] Jesus defendeu a igualdade e os mais pobres, condenando aqueles que se apegavam demais às riquezas. [...] Defendeu a divisão dos bens, como signo da igualdade social. [...] Partilhou o pão e os peixes entre todos. [...] Enfrentou os preconceitos. [...] Acolheu os marginalizados. [...] Foi misericordioso com as prostitutas. [...] Combateu o ódio e a intolerância”.

            Boulos questiona a profunda desigualdade do mundo atual em que 2% da população mundial detêm mais da metade de todas as riquezas, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 1%. E termina o artigo afirmando que “Se Jesus vivesse hoje, talvez fosse preso e torturado, do mesmo modo que milhares de brasileiros que não há muito lutaram por igualdade e justiça e, que seria sem dúvida crucificado, não por autoridades romanas e sacerdotes judeus, mas, moralmente por muitos dos cristãos que, em seu nome, insistem em combater tudo aquilo que ele defendeu”.

 

Sugestão de boa leitura:

Título: De que lado você está?

Autor: Guilherme Boulos.

Editora: Boitempo Editorial, 2015, 144 p.

sábado, 23 de março de 2024

Um artista da fome

         

 


           

No conto "Um artista da fome" do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) não há nomes, apenas o relato do ofício de cada personagem, tais como os açougueiros, os vigilantes, o inspetor, as moças, as crianças e, claro, o artista da fome e seu empresário. Kafka relata que, antigamente havia um artista que era muito reconhecido, porém, a popularidade de sua arte se perdeu no tempo, o artista da fome. O leitor certamente já ouviu, leu ou assistiu na TV que, no passado eram comuns atrações como mulheres barbadas, anões, etc.

            O artista da fome formava uma dupla com seu empresário, que o impedia de jejuar por mais de quarenta dias. O artista considerava que o jejum era uma arte e se lamentava por não estender o prazo além do que o empresário permitia. Sempre que chegavam em uma cidade, o artista dentro de uma jaula, atraía muitos curiosos que lhe vigiavam noite e dia, procurando desmascarar a "fraude" e, eram incentivados a fazê-lo, inclusive com a oferta de lanches pagos pelo empresário para os "fiscais". No entanto, ele tomava apenas água.

            O empresário cuidava do artista e o artista possibilitava ao empresário seu ganha-pão. Quando o interesse da população caía e não mais rendia algum dinheiro, eles mudavam para outra cidade. O tempo passou e a arte do artista da fome passou a não mais atrair a atenção das pessoas. O artista da fome dispensou o seu empresário e se juntou a um circo, pois lá teria acesso ao público.

            No circo teve direito a uma jaula junto aos animais e, pensava que era incompreendido, que não havia reconhecimento a bela arte de jejuar que tão bem executava. As pessoas passavam por ele no intervalo, liam a placa da jaula que o apresentava, mas, passavam direto para ver os animais. Com o tempo, foi esquecido pelos próprios integrantes do circo.

            O dono do circo viu a jaula com um cartaz cujo letreiro encontrava-se apagado e perguntou aos funcionários, por que aquela jaula estava vazia, eles não sabiam, abriu a porta, mexeu na palhada e encontrou um corpo inerte, cutucou-o e o artista da fome respondeu. O dono do circo perguntou se ainda estava fazendo o jejum, sendo que ele respondeu afirmativamente. Disse que fazia o jejum para que as pessoas o admirassem e, também por que não sabia fazer outra coisa, além disso, nunca encontrou alimento algum que ele gostasse, afinal se alimento assim houvesse, ele se fartaria até ficar pançudo como os demais. Após dizer isso, perdeu a consciência e morreu. O dono do circo pediu que providenciassem um enterro para o cadáver que era tão somente pele e ossos.

            Na jaula, o dono do circo mandou que colocassem uma pantera, que andava agitada pelo pequeno espaço que nela havia e, devorava vorazmente a carne que lhe era destinada para o deleite das pessoas que iam vê-la.

            Conto "contado", fica a interpretação a seu encargo, caro leitor. O conto é curto, mas a discussão do tema dá uma monografia!

 

Sugestão de boa leitura:

 

Título: Um artista da fome.

Autor: Franz Kafka.

Editora: Companhia das Letras, 1998, 120 p. 

sexta-feira, 15 de março de 2024

Lavoura arcaica

 


            O escritor, jornalista e agricultor Raduan Nasser nasceu em Pindorama (SP) em 1935, tem uma obra considerada pequena se considerada a quantidade de seus escritos. Porém, essa obra pequena agiganta-se tendo em vista a qualidade literária que apresenta. O autor foi várias vezes premiado, inclusive com o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa concedido por Portugal e Brasil.

            A cerimônia de premiação (em 17/02/2017) foi motivo de vergonha nacional, pois, o Ministro da Cultura Roberto Freire (PPS) no então governo Temer, descontrolou-se emocionalmente ao ouvir o discurso de Raduan Nasser, que denunciava o golpe de Estado de 2016 ao mundo. Na verdade, Roberto Freire agiu de forma premeditada, e quebrando o protocolo pediu para falar depois de Raduan e o resultado foi um discurso de ódio, combatido pela platéia que buscava dar a Raduan o seu merecido dia de homenagem ante o desequilíbrio do Ministro da Cultura. Enquanto a situação vexaminosa se desenrolava, Raduan serenamente assistia ao triste espetáculo de horror protagonizado por Freire.

A obra “Lavoura Arcaica” (1975) chama a atenção pelo sentido poético e pela descrição minuciosa dos fatos vividos pela personagem André, que ora, apresenta-se quase como um narrador, noutras como o protagonista de uma história que mostra uma família presa a tradições culturais arraigadas no tempo, e a contestação adolescente a esta. A ansiedade como este busca seu lugar na vida saindo de casa, e a ela retornando, com a não resolução de um problema crucial: o amor recíproco que alimenta por sua própria irmã.

            Há quem considere a leitura de Lavoura Arcaica, difícil e até mesmo cansativa, pois, a escrita de Raduan foge do lugar-comum, cada palavra foi meticulosamente escolhida pelo autor para deslumbrar o leitor. Eis um “tira-gosto”: “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo”.

 

Sugestão de boa leitura: 

Título: Lavoura arcaica.

Autor: Raduan Nassar.

Editora: Companhia das Letras, 1989, 200 p.

 

 

domingo, 3 de março de 2024

A metamorfose

 

          


       Franz Kafka nasceu aos três de junho de 1883 em Praga (atual capital da República Tcheca) em terras do então Império Austro-Húngaro. Viveu apenas 40 anos, pois faleceu em três de junho de 1924. Uma existência curta, em que teve várias namoradas, noivou algumas vezes, porém jamais se casou. Em seu leito de morte solicitou que seus manuscritos fossem destruídos, mas, graças ao bom senso da pessoa encarregada, seu último desejo não foi atendido.

            Os escritos literários de Kafka influenciaram vários pensadores entre eles: Jean Paul Sartre, Gabriel Garcia Marquez, Albert Camus, entre outros. A originalidade de sua obra deu origem ao termo kafkiano, empregado sempre que alguém descreve algo como surreal ou que confunde o real com a ficção. Também é utilizado tal termo quando a imaginação deste sobre si ou da sociedade sobre o indivíduo, se sobrepõe à realidade atormentando-o.

            Dentre as várias obras de Kafka, “A Metamorfose” (1912) conta a história de um caixeiro viajante solteiro, cujo trabalho exaustivo quase não lhe possibilita tempo para passar com a família. É do fruto de sua labuta que vive o pai, a mãe e a irmã. E todos o valorizam muito, reconhecem seu empenho e lhe são gratos até o momento em que Gregor Samsa sofre uma estranha metamorfose transformando-se num animal medonho.

            A sua família, esconde-o da sociedade confinando-o ao seu quarto, alimenta-o por algum tempo, e, como a situação não se resolve vêm-se forçados a procurar emprego (eles que eram sustentados por Gregor). Começam a falar mal do animal em que Gregor se transformou sem saber que este preservou sua capacidade de audição apesar da perda da capacidade de comunicação.

            O autor mostra por meio desta obra, como as pessoas são amistosas com outrem enquanto podem desfrutar de alguma vantagem material por ela oferecida. Alterada esta situação vantajosa, afastam-se, buscando substituir a pessoa por outra, que lhe dê um melhor retorno. Ler Kafka é adentrar o mundo do surreal para entender melhor as relações humanas que permeiam a realidade societária.

 

Sugestão de boa leitura:

Título: A metamorfose.

Autor: Franz Kafka.

Editora: Companhia das Letras, 1997, 96 p.