É impossível ler o título
desse artigo que remete ao livro de título homônimo de Mary del Priore sem um
sorriso malicioso. Ao decidir ler este livro, sabia que não se tratava de um
romance erótico, gênero muito vendido no Brasil, afinal, sou conhecedor da obra
da autora e já tive a oportunidade de ler alguns de seus livros. Mary Lucy
Murray del Priore (1952) é historiadora, escritora e professora brasileira.
Priore é especialista em História do Brasil, Doutora em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutora pela Ecole des Hautes Etudes en
Sciences Sociales na França. Mary del Priore lecionou História em várias
universidades brasileiras, dentre elas a Universidade de São Paulo (USP) e a
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC/RJ). Foi também
colunista do Jornal O Estado de São Paulo. A autora tem mais de cinquenta
livros publicados e recebeu vários prêmios em reconhecimento de sua obra.
Mary del Priore, cuja obra se pauta na pesquisa histórica
e no desvendamento das relações sociais inclusive em seu caráter mais íntimo,
tem no presente livro aqui resenhado seu primeiro romance histórico. As
personagens são quase todas reais, a trama se baseia em cartas guardadas e
depois encontradas por seus descendentes. Houve a intenção de se fazer uma
adaptação para o cinema do conteúdo das cartas, porém, não foi adiante. Frustrada
a tentativa de chegar à telona, as cartas foram fornecidas à Mary de Priore
para que a história fosse popularizada na forma de um livro. O gênero de
romance histórico mistura fatos e personagens reais com personagens e situações
fictícias. Apesar disso, nos dá um retrato muito preciso da época, da sociedade
e da moral reinante em um determinado período.
A trama é narrada na forma de cartas trocadas pelas
principais personagens que são o Conde russo Maurice Haritoff que se casa com a
jovem Nicota Breves que tinha apenas dezesseis anos e era filha do barão de
café do Vale do Paraíba. A outra personagem é Regina Angelorum, uma filha de
escravos que foi alfabetizada e deixou suas memórias em um diário. As
personagens e os nomes são reais, apesar de parecerem inventados. O casamento
do Conde com a filha do senhor de escravos é realizado por interesses de ambas
as partes, Maurice vai conceder à família Breves uma relação com a nobreza
(mesmo que de outro país), pois, apesar da fortuna, os Breves não tinham um
sobrenome à altura de suas ambições, o Conde, por sua vez, viu sua família
russa arruinada, pois perdeu quase todo o seu patrimônio e vê no casamento com
Nicota a possibilidade de se reerguer financeiramente. A jovem Nicota é
praticamente empurrada pela família a esse casamento.
Na obra, o casal viaja para Paris e Nicota se deslumbra
com a capital francesa. Cartas são trocadas entre familiares e amigos e nos
apresentam impressões sobre o cotidiano do Rio de Janeiro, Paris e São
Petersburgo (Rússia). As cartas do Conde trazem observações sobre o Brasil e
sua gente, a economia, a escravidão, etc., enquanto as cartas de Nicota são mais
ligadas ao casamento, suas alegrias e frustrações, dentre elas o fato de não
conseguir engravidar. Na fazenda no Vale do Paraíba, ela traz para a Casa
Grande e passa a cuidar de uma menina
(filha de escravos) como se filha fosse. A menina é alfabetizada e passa a
escrever um diário. Ela se chama Regina Angelorum. No livro, importantes fatos
históricos são citados, seja nas conversas entre as personagens ou na leitura
de jornais, pois, o período histórico em que vivem é aquele no qual ocorre a
Guerra do Paraguai (1864 -1870), a abolição da escravatura (1888), a decadência
dos barões do café e a Proclamação da República (1889). Maurice escreve cartas
a seus familiares e amigos contando as mudanças ocorridas no país, nestas é
interessante observar a hipocrisia, a falsa moralidade da sociedade brasileira
da época.
A menina Regina Angelorum cresce e se torna uma bonita
moça, o Conde observa isso. Estabelece-se um triângulo amoroso na Casa Grande.
Nicota Breves cujas cartas denotam a angústia de jamais ter conseguido
engravidar e de um casamento no qual não é correspondida na intensidade de seu
amor, percebe a forma como o marido olha Regina, a menina que colocou dentro da
casa e que criou como filha e começa a adoecer. A obra traz ainda relatos sobre
a vida na senzala, as crenças, o misticismo, os benzimentos realizados por
Maria Gata, personagem criada para a trama, mas, que todos sabem, sempre havia
em toda senzala e que cuidava dos males do corpo e da alma dos escravos. Paro
aqui para não dar spoiler. Fica a dica!
Sugestão de boa leitura:
Título:
Beije-me onde o sol não alcança.
Autor:
Mary del Priore.
Editora:
Planeta, 2015, 320 p.