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quarta-feira, 31 de maio de 2023

Beije-me onde o sol não alcança

             



É impossível ler o título desse artigo que remete ao livro de título homônimo de Mary del Priore sem um sorriso malicioso. Ao decidir ler este livro, sabia que não se tratava de um romance erótico, gênero muito vendido no Brasil, afinal, sou conhecedor da obra da autora e já tive a oportunidade de ler alguns de seus livros. Mary Lucy Murray del Priore (1952) é historiadora, escritora e professora brasileira. Priore é especialista em História do Brasil, Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutora pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales na França. Mary del Priore lecionou História em várias universidades brasileiras, dentre elas a Universidade de São Paulo (USP) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC/RJ). Foi também colunista do Jornal O Estado de São Paulo. A autora tem mais de cinquenta livros publicados e recebeu vários prêmios em reconhecimento de sua obra.

            Mary del Priore, cuja obra se pauta na pesquisa histórica e no desvendamento das relações sociais inclusive em seu caráter mais íntimo, tem no presente livro aqui resenhado seu primeiro romance histórico. As personagens são quase todas reais, a trama se baseia em cartas guardadas e depois encontradas por seus descendentes. Houve a intenção de se fazer uma adaptação para o cinema do conteúdo das cartas, porém, não foi adiante. Frustrada a tentativa de chegar à telona, as cartas foram fornecidas à Mary de Priore para que a história fosse popularizada na forma de um livro. O gênero de romance histórico mistura fatos e personagens reais com personagens e situações fictícias. Apesar disso, nos dá um retrato muito preciso da época, da sociedade e da moral reinante em um determinado período.

            A trama é narrada na forma de cartas trocadas pelas principais personagens que são o Conde russo Maurice Haritoff que se casa com a jovem Nicota Breves que tinha apenas dezesseis anos e era filha do barão de café do Vale do Paraíba. A outra personagem é Regina Angelorum, uma filha de escravos que foi alfabetizada e deixou suas memórias em um diário. As personagens e os nomes são reais, apesar de parecerem inventados. O casamento do Conde com a filha do senhor de escravos é realizado por interesses de ambas as partes, Maurice vai conceder à família Breves uma relação com a nobreza (mesmo que de outro país), pois, apesar da fortuna, os Breves não tinham um sobrenome à altura de suas ambições, o Conde, por sua vez, viu sua família russa arruinada, pois perdeu quase todo o seu patrimônio e vê no casamento com Nicota a possibilidade de se reerguer financeiramente. A jovem Nicota é praticamente empurrada pela família a esse casamento.

            Na obra, o casal viaja para Paris e Nicota se deslumbra com a capital francesa. Cartas são trocadas entre familiares e amigos e nos apresentam impressões sobre o cotidiano do Rio de Janeiro, Paris e São Petersburgo (Rússia). As cartas do Conde trazem observações sobre o Brasil e sua gente, a economia, a escravidão, etc., enquanto as cartas de Nicota são mais ligadas ao casamento, suas alegrias e frustrações, dentre elas o fato de não conseguir engravidar. Na fazenda no Vale do Paraíba, ela traz para a Casa Grande  e passa a cuidar de uma menina (filha de escravos) como se filha fosse. A menina é alfabetizada e passa a escrever um diário. Ela se chama Regina Angelorum. No livro, importantes fatos históricos são citados, seja nas conversas entre as personagens ou na leitura de jornais, pois, o período histórico em que vivem é aquele no qual ocorre a Guerra do Paraguai (1864 -1870), a abolição da escravatura (1888), a decadência dos barões do café e a Proclamação da República (1889). Maurice escreve cartas a seus familiares e amigos contando as mudanças ocorridas no país, nestas é interessante observar a hipocrisia, a falsa moralidade da sociedade brasileira da época.

            A menina Regina Angelorum cresce e se torna uma bonita moça, o Conde observa isso. Estabelece-se um triângulo amoroso na Casa Grande. Nicota Breves cujas cartas denotam a angústia de jamais ter conseguido engravidar e de um casamento no qual não é correspondida na intensidade de seu amor, percebe a forma como o marido olha Regina, a menina que colocou dentro da casa e que criou como filha e começa a adoecer. A obra traz ainda relatos sobre a vida na senzala, as crenças, o misticismo, os benzimentos realizados por Maria Gata, personagem criada para a trama, mas, que todos sabem, sempre havia em toda senzala e que cuidava dos males do corpo e da alma dos escravos. Paro aqui para não dar spoiler. Fica a dica!

Sugestão de boa leitura:

Título: Beije-me onde o sol não alcança.

Autor: Mary del Priore.

Editora: Planeta, 2015, 320 p.